Quando um produto de beleza menciona “cuidados com o cabelo”, o sentido implícito é dos “pelos que cobrem a cabeça” 1Em árabe e inglês, o termo é o mesmo para se referir aos pelos que crescem no topo da cabeça (cabelo) e nas demais regiões do corpo. A tradução ao português optou pelo uso de “pelos” de modo amplo, com menções específicas a “cabelo” onde o contexto favorecia essa interpretação.. Nada para além disso existe ou é reconhecido. E isso acontece porque os pelos do corpo estão sob controle do olhar patriarcal — trata-se de um dos fatores utilizados para categorizar, dominar e controlar os corpos das mulheres. Começando com a dualidade entre homem e mulher e passando pela definição de beleza ou falta dela, pela sexualidade ou falta de sexualidade das pessoas, o sistema patriarcal utiliza pelos e cabelo — corte, cor, o aspecto crespo ou liso, sua presença ou ausência, o lugar onde estão no corpo — para verificar o gênero e a posição de classe de indivíduos e sua conformidade com o gênero imposto.
Neste texto, discutiremos as práticas de controle e disciplina do sistema patriarcal sobre corpos por meio dos pelos. Nossa ênfase estará nos corpos das mulheres, vigiados, controlados e disciplinados em uma tentativa permanente de criar e proteger uma “feminilidade”.
Em nossa leitura dos pelos como ferramenta de disciplinamento do corpo, nós os vemos como mais uma rearticulação do corpo como espaço de subjugação. Como resultado disso, perguntamos o seguinte neste artigo: como a concepção de “feminilidade” e o processo de criação de uma mulher “feminina” são, por um lado, ferramenta de subjugação e controle dos corpos e, por outro, ferramenta para retratá-los como corpos imperfeitos? Buscaremos responder a essa pergunta por meio da concepção de Michel Foucault sobre poder e pela nossa experiência relacionada à violência produzida pelas dinâmicas de poder, hegemonia e disciplina existentes.
Em termos foucaultianos, o poder trata o corpo como espaço de disciplinamento. Após serem obrigados a abolir práticas públicas de tortura e retaliação, (alguns) regimes se voltaram à produção do corpo dócil, sujeito a seu poder sem as ferramentas aparentes de violência. Existe uma autoridade sobre os corpos nesse contexto, mas “sem a fricção tradicional que gera resistência”. Parece evidente, pela forma como o poder hegemônico lida com os corpos das mulheres e dos povos colonizados, que essa hegemonia busca criar o corpo disciplinado por meio dos pelos. É impressionante como os pelos que cobrem o corpo são classificados pela lógica masculina em duas dimensões: como deve ser a aparência dos pelos e onde eles devem ou não crescer.
Dentro da estrutura de “ensinar” uma disciplina às mulheres e transformá-las em “corpos submissos”, desde muito novas as mulheres aprendem não só como se mover e se comportar, mas também como seus pelos devem ou não ser. Nesse sentido, a “feminilidade” é uma das ferramentas utilizadas, por um lado, para classificar o comportamento e, por outro, a forma dos pelos e sua presença ou ausência.
Os pelos fazem parte de um processo de criação de gênero, o que significa que o binário mulher-homem está muito ligado a quanto do corpo está coberto de pelos. Por meio dos pelos, o sistema patriarcal diferencia mulheres e homens. E, assim, faz das mulheres com mais pelos no corpo ou com uma distribuição diferente (por exemplo, com menos cabelo na cabeça e/ou mais pelos no rosto) menos “femininas”; e faz dos homens com corpos menos ou não cobertos por pelos menos “masculinos”.
Assim, comprova-se o paradigma binário de feminilidade e masculinidade, separadas de forma irrealista. São rejeitados os corpos das mulheres e de pessoas LGBT+ que optam por não sujeitá-los a essa dicotomia, porque o sistema não aceita nada fora dessas duas categorias. Nisso, os corpos obedientes são formados não apenas por seu comportamento, movimento e sexualidade, mas também pela forma — e pelos pelos que os cobrem.
A disciplina aparece de maneira mais firme, dura e maior sobre os corpos de mulheres e pessoas LGBT+ do que sobre os corpos de homens cis. Isso significa que o sistema busca adaptar os corpos daquelas pessoas em maior medida do que no caso de homens heterossexuais. Por essa perspectiva, vemos como a feminilidade é uma forma efetiva de controle social.
Os corpos das mulheres, de pessoas LGBT+ e de povos colonizados em especial são espaço dessa relação de poder e de sua implementação. Com base nas teorias foucaultianas, nossos corpos são um “texto” que é lido, no contexto patriarcal, como entidade “hiper” sexual. Esse excesso — ou seja, a falta de disciplina de que esse corpo sofre — é uma das formas de fazer dele o “outro”. É por isso que ele deve ser disciplinado, aparado e controlado, para puni-lo por sua sexualidade, em uma tentativa de domesticá-lo.
Nesse sentido, a forma de nossos pelos e sua presença ou ausência não aparece como resultado de escolhas individuais, mas como resultado do processo de “construção do corpo feminino ideal”. Jacques Lacan afirma que o corpo é secundário, e não primário, no sentido de que não é, mas torna-se. Segundo o autor, essa estrutura ou anatomia não é destino, mas discurso: assim como o gênero, nossos corpos também são uma construção social. Isso significa que eles são construídos e formados ou pelo sistema dominante ou por nós. E por ser hoje mais forte, o sistema dominante consegue, em cada dimensão e em cada intersecção, moldar e definir os corpos de indivíduos, comunidades e povos e, assim, fazer parecer que essa construção é primária.
Volto a Foucault e seu uso do conceito de panóptico. O panóptico é reproduzido socialmente pela transformação de mulheres e pessoas LGBT+ em torres de vigilância umas das outras. Assim, elas observam o corpo, o tamanho e a forma das demais, e os pelos que as cobrem, e as pressionam a tirá-los ou apará-los, na aceitação do olhar masculino, internalizado em sua abordagem sobre seus próprios corpos.
Nesse contexto de vigilância, os corpos que precisam ser mudados e “melhorados” precisam ser vistos como defeituosos, como se tivessem nascido com um defeito que deve ser constantemente escondido e com uma aparência que deve ser monitorada para preservar sua “feminilidade”. Assim, o “processo” de feminilidade é um processo que aliena as mulheres de seus corpos e faz com que se sintam defeituosas, incapacitando-as ao mesmo tempo, especialmente aquelas que não têm condições financeiras, tempo e os luxos e privilégios necessários para realizar esse processo.
A ausência de práticas públicas de tortura e violência contra indivíduos que não se submetem aos valores patriarcais relacionados ao corpo não significa que as pessoas estejam livres em seus corpos e práticas. Na verdade, elas são forçadas a enfrentar punições de outra ordem. Algumas formas de punição são, por exemplo, o desdém por nossos pelos e cabelos crespos e as caretas voltadas para nós quando partes “indevidas” do nosso corpo estão cobertas de pelos.
No patriarcado, o corpo é uma propriedade pública, sobretudo os corpos de comunidades colonizadas, de mulheres, de pessoas LGBT+. Ou seja, o corpo é propriedade da sociedade, que tem o poder de determinar sua aparência, controlá-lo para dominá-lo, e rejeitá-lo quando esse corpo decide não seguir seus padrões. Os pelos são íntimos, pessoais, ou são públicos. Também são uma estrutura política, não porque queremos que seja, mas porque o colonialismo e o patriarcado fizeram isso deles.
Este texto é uma versão mais curta de um artigo com o mesmo título, publicado originalmente em árabe na My Kali Magazine.