Noémia de Sousa foi uma das mais influentes poetas moçambicanas do século XX. Seus poemas estão reunidos no livro Sangue negro, publicado pela primeira vez em 2001, meses antes de sua morte. Apesar disso, foi entre 1949 e 1952 que a autora escreveu a maioria de seus poemas, na casa dos vinte anos. A pesquisadora Laura Cavalcanti Padilha relata que “durante 50 anos, esta obra circulou em policópias que passavam de mão em mão, às vezes em reproduções muito precárias”.
Incrível é pensar que lemos Sangue negro por todo esse tempo, trabalhando-o em ensaios, livros, cursos, etc. (…) Dissertações e teses foram escritas sobre uma obra não editada, o que me parece absolutamente surpreendente. (…) O livro ganhou corpo, alma e voz, um ano antes da morte de sua autora, ocorrida em 2002. Penso que esse fato é simbólico e sintomático e não dá para considerá-lo apenas na série histórica dos acasos e coincidências.
Laura Cavalcanti Padilha, 2004
Noémia de Sousa colaborava para O Brado Africano, periódico moçambicano que deu impulso às produções literárias e às elaborações sobre a africanidade. Sua produção, marcada por uma voz poética engajada e coletiva, foi importante para fortalecer as expressões anticoloniais em África. Para a poeta e pesquisadora Bianca Gonçalves, “a construção da identidade negra, a busca pela africanidade e a exaltação da liberdade são temas constantes em sua poesia, como demandava a geração de poetas pré-independência”. Essa literatura produzida por Noémia e outras e outros de sua geração teve um papel fundamental na formação do sentimento anticolonial e, também, na formação de uma poesia mais livre dos parâmetros excludentes produzidos pela cultura europeia.
E de repente resolvi escrever essa coisa porque eu via as coisas que apareciam nos jornais, lá, e achava que as pessoas escreviam sempre sobre Portugal. As pessoas escreviam, escreviam sempre como se estivessem em Portugal e eu, confluência de não sei quantas raças, só dentro da minha família tinha contatos com quase todos os grupos étnicos que havia lá, e, portanto, seguia um bocado a vida de todos, e revoltava-me com coisas que me aconteciam e que aconteciam a outros todo o tempo, achava que as pessoas estavam a voltar as costas à realidade.
Seus poemas eram publicados em jornais e revistas, veículos de maior circulação e de acesso mais fácil do que eram os livros; por isso, também circulavam muito no boca a boca. “Noémia de Sousa resistia ao formato livresco por conta do analfabetismo de seu povo, reafirmando, dessa forma, o lugar da palavra poética nos circuitos da oralidade”, explica Bianca em resenha sobre Sangue negro.
Negro não tinha acesso a essas escolas, à instrução pública! O negro só quando assimilado é que tinha acesso. Quando eu estudei era numa escola muito grande, não havia um único negro. (…) Negro tinha de ser assimilado, de ter um documento passado pelas autoridades a dizer que vivia como um branco: comia numa mesa, não comia no chão, na esteira, dormia numa cama, etc., falava português, quer dizer: estava assimilado à cultura portuguesa.
A poeta, ao mesmo tempo que exaltava a cultura nacional e africana popular e anticolonial, posicionava em sua obra a negritude em viés internacional, declarando apoio mútuo e irmandade entre os povos negros do mundo, bem como homenageando ou fazendo referência a figuras negras das artes e da política das Américas. O poema que compartilhamos abaixo, para homenagear Noémia na data de seu nascimento, tem essa proposta. Em “Deixa passar meu povo”, Noémia de Sousa aproxima, através da música, a noite em Moçambique à noite no Harlem, bairro negro nos Estados Unidos, aproxima a marimba ao blues, e irmana as resistências dos povos negros subalternizados, de formas distintas, por um mesmo processo colonial.
Deixa passar meu povo
para João Silva
Noite morna de Moçambique
e sons longínquos de marimbas chegam até mim
– certos e constantes –
vindos nem eu sei donde.
Em minha casa de madeira e zinco,
abro o rádio e deixo-me embalar…
Mas as vozes da América remexem-me a alma e os nervos.
E Robeson e Maria cantam para mim
spirituals negros do Harlem.
“Let my people go”
– oh deixa passar o meu povo,
deixa passar o meu povo! –
dizem.
E eu abro os olhos e já não posso dormir.
Dentro de mim soam-me Anderson e Paul
e não são doces vozes de embalo.
“Let my people go”!
Nervosamente,
sento-me à mesa e escrevo…
Dentro de mim,
deixa passar o meu povo,
“oh let my people go…”
E já não sou mais que instrumento
do meu sangue em turbilhão
com Marian me ajudando
com sua voz profunda – minha irmã!
Escrevo…
Na minha mesa, vultos familiares se vêm debruçar.
Minha Mãe de mãos rudes e rosto cansado
e revoltas, dores, humilhações,
tatuando de negro o virgem papel branco.
E Paulo, que não conheço
mas é do mesmo sangue e da mesma seiva amada de Moçambique,
e misérias, janelas gradeadas, adeuses de magaíças,
algodoais, o meu inesquecível companheiro branco
e Zé – meu irmão – e Saúl,
e tu, Amigo de doce olhar azul,
pegando na minha mão e me obrigando a escrever
com o fel que me vem da revolta.
Todos se vêm debruçar sobre o meu ombro,
enquanto escrevo, noite adiante,
com Marian e Robeson vigiando pelo olho luminoso do rádio
– “let my people go,
oh let my people go!”
E enquanto me vierem do Harlém
vozes de lamentação
e meus vultos familiares me visitarem
em longas noites de insónia,
não poderei deixar-me embalar pela música fútil
das valsas de Strauss.
Escreverei, escreverei,
com Robeson e Marian gritando comigo:
Let my people go,
OH DEIXA PASSAR O MEU POVO!