Em 5 de março de 1871, há exatos 151 anos, nascia a revolucionária polaco-alemã Rosa Luxemburgo. Rosa trouxe contribuições fundamentais para o marxismo e para as lutas políticas em sua época. Contra as hierarquias que afastam o Estado da vida comum, afirmou a soberania do povo e sua capacidade de liderar a si mesmo. Contra a opressão das mulheres, defendeu o sufrágio feminino e destacou o papel da mulher proletária na revolução.
Contra a guerra, denunciou o papel do militarismo para a acumulação de capital e para o desenvolvimento do imperialismo, que explora outros continentes, povos e bens comuns. Sobre esse último assunto, Rosa escreveu em seu livro A acumulação do capital que “o militarismo tem uma função determinada na história do capital. Acompanha todas as fases históricas da acumulação”.[1]
O capital utiliza-se mais energicamente do militarismo para assimilar, através do colonialismo e da política mundial, os meios de produção e as forças de trabalho dos países ou das camadas não-capitalistas. (…) Quanto mais violentamente o militarismo extermine, tanto no exterior como no interior, as camadas não-capitalistas, e quanto piores as condições de vida das camadas trabalhadoras, tanto mais a história cotidiana da acumulação no mundo se transforma numa série de catástrofes e de convulsões, que, acrescentadas ainda às crises econômicas periódicas, tornarão impossível a continuação da acumulação e necessária a rebelião da classe operária internacional contra a dominação imperialista, antes mesmo que ela tropece economicamente na barreira natural colocada por ela mesma. O capitalismo é a primeira forma econômica com capacidade de desenvolvimento mundial. Uma forma que tende a estender-se por todo o âmbito da terra e a eliminar todas as demais formas econômicas; que não tolera a coexistência de nenhum outro. Mas é também a primeira que não pode existir sozinha, sem outras formas econômicas de que possa alimentar-se.
A acumulação do capital
Em data próxima ao natal de 1917, quando se encontrava presa, Rosa enviou uma carta à sua amiga Sophie Liebknetch encorajando-a a se manter firme na luta e a não se preocupar com notícias falsas sobre o suposto caos na Rússia pós-revolução. Nessa carta emocionante, Rosa relata um episódio de violência contra um búfalo, que viu durante sua estadia na prisão. A humilhação sofrida pelo búfalo por um soldado alemão é, para ela, mais uma expressão do militarismo e do sofrimento generalizado causado pela cultura das guerras. Compartilhamos abaixo uma tradução da carta.
Rosa foi assassinada em 15 de janeiro de 1919, junto com os também militantes do Partido Comunista Alemão Karl Liebknecht e Wilhelm Pieck, pelo perigo que sua ação política representava para as forças alemãs. Em setembro desse mesmo ano, a revolucionária alemã Clara Zetkin escreveu um perfil homenageando Rosa, no qual recorda sua indomável disposição, disciplina e sensibilidade.[2]
O trabalho e a luta lhe infundiam ânimo. De seus lábios raras vezes saía um ‘não posso’; por outro lado, sempre saía o ‘devo’. (…) Luxemburgo, grande teórica do socialismo científico, não incorria nunca nesse pedantismo livresco que aprende tudo na letra impressa e desconhece qualquer outro alimento espiritual que não seja os conhecimentos indispensáveis e circunscritos a sua especialidade; sua grande ânsia de saber não conhecia limites, e seu amplo espírito, sua aguda sensibilidade levavam-na a descobrir na natureza e na arte fontes continuamente renovadas de prazer e riqueza interior. (…) Com uma abnegação que não há palavras para expressar, Rosa colocou a serviço do socialismo tudo o que era, tudo o que valia sua pessoa e sua vida
Clara Zetkin
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Breslau, antes de 24 de dezembro de 1917
Sonitchka, meu passarinho, fiquei tão contente com a sua carta! Queria responder imediatamente mas tinha muito o que fazer, e precisava de grande concentração, por isso não pude dar-me a esse luxo. Então preferi esperar uma oportunidade, pois é muito melhor poder tagarelar com você à vontade.
Pensei em você todos os dias ao ler as notícias da Rússia, e preocupei-me imaginando a sua enorme aflição a cada telegrama estúpido. O que de lá chega neste momento são, na maioria, informações de tártaros, e isso é duplamente verdadeiro no que se refere ao sul. O que importa às agências telegráficas (aqui e lá) é exagerar o mais possível o caos, e elas aumentam de maneira tendenciosa todo boato não confirmado. Até as coisas se esclarecerem, não tem sentido, não há razão para inquietar-se à toa, por antecipação. De modo geral, parece que as coisas se passam sem nenhum derramamento de sangue; em todo caso, os boatos sobre “combates” não foram confirmados. Trata-se simplesmente de uma áspera luta partidária a qual parece sempre, pela explicação dos correspondentes dos jornais burgueses, uma loucura desenfreada e um inferno. No que se refere aos pogroms contra judeus, todos os boatos nesse sentido são completamente falsos. Na Rússia, a época dos pogroms acabou de uma vez por todas. O poder dos trabalhadores e do socialismo é muito forte para isso. A revolução purificou de tal maneira a atmosfera dos miasmas e do ar sufocante da reação que Kichinev é para sempre passé.Tenho menos dificuldade em imaginar pogroms contra judeus na Alemanha… Aí reina sem dúvida a atmosfera de baixeza, covardia, reação e estupidez propícia para isso. Nesse ponto, você pode ficar totalmente tranquila no que se refere ao sul da Rússia. Como as coisas desembocaram ali num conflito muito agudo entre o governo de São Petersburgo e a Rada, logo elas devem se resolver e esclarecer, o que permitirá ter um panorama da situação. De todos os pontos de vista não faz nenhum sentido, não há nenhum motivo para que você, na incerteza, se aflija, cheia de medo e inquietação. Tenha coragem, minha menina, mantenha a cabeça erguida, fique firme e tranquila. Tudo vai melhorar, é só não ficar sempre à espera do pior!…
Eu tinha uma grande esperança de vê-la por aqui em breve, em janeiro. Agora soube que Mat[thilde] W[urm] Quer vir em janeiro Seria difícil para mim desistir da sua visita em janeiro, mas como é natural não posso decidir. Se você disser que só pode vir em janeiro, então talvez fique como estava; talvez Mat[thilde] W[urn] possa vir em fevereiro? Em todo caso, gostaria de saber logo quando a verei.
Faz agora um ano que Karl [Liebknecht] está na prisão em Luckau, neste mês pensei nisso com frequência; faz exatamente um ano você esteve comigo em Wronke e me ofereceu a linda árvore de Natal… Este ano pedi que me comprassem uma, mas a que me trouxeram era muito reles, com galhos faltando – não tem comparação com a do ano passado. Não sei como vou pôr as oito velas que comprei. É o meu terceiro Natal no xadrez, mas não considere isso tragicamente. Estou calma e alegre como sempre.
Ontem fiquei muito tempo acordada – agora não consigo dormir antes da uma, mas preciso ir para cama às 10 porque a luz é apagada –, e então no escuro sonho com diversas coisas. Ontem então pensava: como é estranho eu viver permanentemente numa alegre embriaguês, sem nenhuma razão particular. Assim, por exemplo, estou aqui deitada nesta cela escura, num colchão duro como pedra, enquanto à minha volta, no edifício, reina a habitual paz de cemitério; parece que está no túmulo. Através da janela desenha-se no teto o reflexo do bico de gás ardendo a noite inteira em frente da prisão. De tempo em tempos ouve-se o ruído surdo de um trem que passa ao longe, ou então, bem perto, debaixo das minhas janelas, o pigarro da sentinela que, com suas botas pesadas, dá alguns passos lentos para desentorpecer as pernas. A areia estala tão desesperadamente sob esses passos que todo vazio e a falta de perspectivas da existência ressoam na noite úmida e sombria. E aqui estou deitada, quieta, sozinha, enrolada nos véus negros das trevas, do tédio, da falta de liberdade, do inverno – e, apesar disso, meu coração bate com uma alegria interior desconhecida, incompreensível, como se debaixo de um sol radiante estivesse atravessando um prado em flor. No escuro, sorrio à vida, como seu eu conhecesse algum segredo mágico que pune todo mal e as tristes mentiras, transformando-as em luz intensa e felicidade. E, ao mesmo tempo, procuro uma razão para essa alegria, não encontro nada, e tenho que sorrir novamente – de mim mesma. Creio que o segredo não é outro senão a própria vida; a profunda escuridão noturna é bela e suave como veludo, basta saber olhar. No estalar da areia úmida sob os passos lentos e pesados da sentinela canta também uma bela, uma pequena canção da vida – basta apenas saber ouvir. Nesses momentos penso em você. Gostaria tanto de passar-lhe essa chave mágica para que você percebesse sempre, em todas as situações, o que há de belo e alegre na vida, para que também você viva na embriaguês, como que caminhando por um prado cheio de cores. Longe de mim a ideia de contentá-la com ascetismo, com alegrias imaginárias. Concedo-lhe todas as verdadeiras alegrias dos sentidos. Só gostaria de dar-lhe também a minha inesgotável serenidade interior, para não me preocupar mais com você, para que andasse na vida com um manto de estrelas protegendo-a de tudo que é mesquinho, banal e angustiante.
Você colheu no parque de Steglitz um lindo buquê de bagos negros e rosa-violeta. Os bagos negros podem ser de sabugueiro – seus bagos pendem em cachos pesados e densos entre grandes feixes de folhas pinuladas, você certamente conhece – ou, mais provavelmente, de alfena: panícula de bagos, elegantes, graciosas, eretas, e folhinhas verdes, compridas e finas. Os bagos rosa-violeta, escondidos sob folhas bem pequeninas, podem ser de nespereira anã; na realidade, eles são vermelhos, mas neste período da estação, já demasiado maduros e começando a apodrecer, têm frequentemente uma aparência violeta avermelhada; as folhinhas parecem-se com as do mirto, pequenas, afiladas na ponta, o lado de cima verde escuro, semelhante ao couro, o de baixo rugoso.
Soniucha, você conhece o poema de Platen, “Garfo fatal”? Você poderia enviá-lo ou trazê-lo? Karl mencionou uma vez que tinha lido em casa. Os poemas de George são bonitos; agora sei de onde vem o verso “e sob o murmúrio do trigo erubescente”. [Umd unterm Rauschen rötlichen Getreides…] que você sempre recitava quando íamos passear no campo. Você poderia copiar para mim, quando for possível, o novo “Amadis”? Gosto tanto desse poema – naturalmente graças ao lied de Hugo Wolf –, mas não o tenho aqui. Você continua lendo a Lenda de Lessing? Retomei a História do materialismo, de Lange, que sempre me estimula e restaura. Gostaria tanto que você a lesse um dia desses.
Ah! Sonitchka, passei aqui por uma dor violenta. No pátio onde passeio chegam muitas vezes carroças do exército, abarrotadas de sacos ou túnicas velhas e camisas de soldados, muitas vezes manchadas de sangue…; são descarregadas, distribuídas pelas celas, consertadas, novamente postas nas carroças para serem entregues ao exército. Outro dia, chegou uma dessas carroças, puxada não por cavalos, mas por búfalos. Era a primeira vez que via esses animais de perto. São mais fortes e maiores que os nossos bois, têm a cabeça chata, chifres curvos e baixos, e uma cabeça totalmente negra, de grandes olhos meigos, que lembra a dos nossos carneiros. Vêm da Romênia, são um troféu de guerra… os soldados que conduziam a carroça diziam ser muito difícil capturar esses animais selvagens, e ainda mais difícil utilizá-los para carregar fardos, pois estavam acostumados à liberdade. Foram terrivelmente maltratados até compreenderem que perderam a guerra e que também para eles vale a expressão “vae victis” [ai dos vencidos]… Só em Breslau deve haver uma centena desses animais; acostumados que estavam às ricas pastagens da Romênia recebem ali uma ração parca, miserável. Trabalham sem descanso puxando todo tipo de carga e com isso não demoram a morrer. Há alguns dias então uma dessas carroças cheia de sacos entrou no pátio. A carga era tão alta que os búfalos não conseguiam transpor a soleira do portão. O soldado que os acompanhava, um tipo brutal, pôs-se a bater-lhes de tal maneira com o grosso cabo do chicote que a vigia da prisão, indignada, perguntou-lhe se não tinha pena dos animais. “Ninguém tem pena de nós, homens”, respondeu com um sorriso mau e pôs-se a bater ainda com mais força… Os animais deram finalmente um puxão e conseguiram transpor o obstáculo, mas um deles sangrava… Sonitchka, a pele do búfalo é proverbialmente espessa e resistente, e ela foi dilacerada. Durante o descarregamento, os animais permaneciam imóveis, esgotados, e um deles, o que sangrava, olhava em frente e tinha, na cara escura e nos olhos negros e meigos, uma expressão de uma criança em prantos. Era exatamente a expressão de uma criança que foi severamente punida e que não sabe por qual motivo, por que, não sabe como escapar ao sofrimento e a essa força brutal… eu estava diante dele, o animal me olhava, as lágrimas saltaram-me dos olhos – eram as suas lágrimas. Ninguém pode sofrer mais por um irmão querido do que eu sofri na minha impotência com essa dor silenciosa. Como estavam longe, perdidas, inacessíveis, as pastagens da Romênia, essas pastagens verdes suculentas e livres! Como tudo lá era diferente, o brilho do Sol, o sopro do vento, como eram diferentes os belos cantos dos pássaros ou o melodioso chamado do pastor. E aqui – esta cidade estrangeira, horrível, o estábulo sombrio, o feno mofado, repugnante, misturado com a palha apodrecida, os homens desconhecidos, assustadores, e – as pancadas, o sangue que corre da ferida aberta… Oh! meu pobre búfalo, meu pobre irmão querido, aqui estamos os dois tão impotentes e mudos, mas somos só um na dor, na impotência, na saudade. Entretanto os prisioneiros agitavam-se em volta do carro, descarregavam os pesados sacos e arrastavam-nos para dentro; já o soldado enfiara as mãos nos bolsos das calças e percorrendo o pátio com grandes passos, ria e assobiava baixinho uma canção da moda. Diante de mim a guerra desfilava em todo o seu esplendor.
Escreva logo.
Abraços, Sonitchka,
Sua R
Sonitchka, querida, fique calma e alegre apesar de tudo. Assim é a vida. É preciso tomá-la corajosamente, sem medo, sorrindo – apesar de tudo. Feliz Natal!
[1] A tradução do capítulo “Militarismo como campo da acumulação do capital” está na edição de A acumulação do capital da editora Zahar de 1970.
[2] O texto foi originalmente publicado na revista The Communist International [A Internacional Comunista].