Estamos em uma jornada de lutas exigindo a revogação da Lei 6.830, conhecida como Lei Zabala-Ribera, que criminaliza as pessoas que lutam pelo direito à terra. A lei altera o artigo 142 do Código Penal e aumenta a pena máxima de prisão por invasão de propriedade privada de cinco para dez anos, sem julgamento. A mudança foi aprovada em menos de oito dias. Grandes latifundiários da soja e pecuária, organizados em agremiações de produtores, têm influência sobre as políticas públicas e mudam as leis de acordo com seus interesses para expulsar as populações.
Assim que a lei foi aprovada, em setembro de 2021, uma série de comunidades indígenas foi despejada à força. As pessoas passaram a viver nas ruas da capital. As mulheres, especialmente as jovens, estão agora em situação de exploração sexual. As crianças estão mendigando. Enquanto isso, as pessoas que lutam em defesa de seus territórios são criminalizadas e acusadas de invasão de propriedade privada.
Não existe mais um protocolo de despejo com aviso prévio, que permitia às pessoas defender sua produção, seus animais, suas casas. O despejo ocorre sem aviso, com as Forças Armadas e empresários, que chegam já queimando as casas enquanto os tratores plantam a soja. Eles queimam cemitérios tradicionais e, sobre eles, plantam soja.
Menos de um mês após a aprovação da lei, a comunidade chamada Ka’a Poty já foi despejada pela segunda vez. Comunidades e povos indígenas realizaram uma marcha a favor dessa comunidade. Houve confrontos com as forças armadas e seus esquadrões de choque, e várias pessoas ficaram feridas. A lei dá ainda mais poder às Forças Armadas do Paraguai, porque os militares são os guarda-costas dos latifundiários da agropecuária.
Oficialmente, existem mais de 800 assentamentos e comunidades indígenas a serem despejados. Esse número é o resultado da inação de instituições como o Instituto Paraguaio Indígena (INDI), o Ministério da Agricultura e o Ministério Público, e da existência de terras devolutas [“mal habidas”, em espanhol], terras públicas que foram distribuídas a aliados do governo durante a ditadura. A revogação da lei não vai mudar completamente essa situação. Portanto, exigimos a suspensão dos despejos por pelo menos um ano, período durante o qual podemos avançar na regularização dos assentamentos.
O ponto principal de uma nova jornada de lutas
Em 2021, as organizações sociais e camponesas se reuniram para analisar nossa situação durante a pandemia. Questões políticas, econômicas e sociais foram modificadas; há leis que foram aprovadas no meio da pandemia. Quanto à economia, o resultado é o avanço do agronegócio nos nossos territórios. Essa é a razão para a mudança na lei.
Estamos em uma situação muito desfavorável em termos de justiça. Vivenciamos a opressão e repressão, que resultam em prisões políticas devido às lutas pela terra. O Ministério Público é um dos três poderes nacionais, e está apoiando fortemente a narco-política e os despejos forçados nas comunidades indígenas. O Paraguai se tornou um narcoestado. Essa é a face do capitalismo que estamos enfrentando.
Supostamente, as comunidades indígenas contam com o INDI, mas essa instituição também não tem poder para defender as comunidades quando um juiz ou um promotor da região ordena o despejo forçado.
No Paraguai existem 21 povos indígenas de diferentes culturas e línguas. Aqueles com território fértil, florestas e nascentes são os escolhidos pelas empresas transnacionais para produzir soja transgênica e pecuária extensiva. Infelizmente, a jagunçagem no campo é cada vez mais comum. A fim de evitar a luta pela terra indígena, sítios, casas e comunidades são incendiados. Foram incendiados instituições educacionais e lugares sagrados onde anciãos e anciãs fazem suas orações culturais. As casas construídas há anos foram demolidas, assim como as plantações. É também muito simbólico que, ao realizarem os despejos, também destruam fontes e poços de água.
Tudo isso nos uniu. Em novembro conseguimos fazer uma grande plenária nacional, reunindo pessoas camponesas, urbanas e indígenas. Fizemos uma grande mobilização no dia 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos. Milhares de nós foram às ruas para exigir o fim das violações. Lá anunciamos que em março teríamos grandes mobilizações.
Começamos com o 8 de março, Dia Internacional de Luta das Mulheres, e no dia 9 de março seguimos com as lutas prolongadas. Nós as chamamos de “lutas prolongadas” porque não terão fim, e porque sabemos que, sem força popular, não vamos revogar a lei de criminalização.
No dia 24 de março, realizamos uma marcha camponesa indígena e popular, unificando nossos esforços. Foi uma marcha histórica que reuniu 20 mil pessoas, uma multidão onde o espírito de valentia não deixou espaço para o cansaço e a fome. 20 mil pessoas mobilizadas em Assunção não é algo simples: envolve um processo de organização extraordinário. Grande parte desse processo de articulação tem a ver com a Via Campesina e suas organizações nacionais: a Coordenação Nacional de Organização das Mulheres Trabalhadoras, Rurais e Indígenas (Conamuri), a Federação Nacional Camponesa (FNC) e a Organização de Luta pela Terra (OLT) são as lideranças políticas da marcha.
A luta prolongada durou 16 dias de atividades. Durante esses dias, vimos como as pessoas têm resistido, sejam crianças, jovens ou líderes que estiveram ao lado de seu povo. Houve trancamento de estradas em 60 lugares em todo o país durante esses dias. No acampamento, passamos por necessidades básicas, chuvas e tempestades, mas também tivemos belas assembleias populares. Resistimos a tudo, e agora estamos fazendo um breve intervalo, isso é, estamos voltando aos nossos territórios para nos prepararmos melhor e prosseguir.
Reivindicações das lutas prolongadas
Exigimos um diálogo com os três poderes do governo. Conseguimos sentar à mesa para falar, mas nenhum acordo permanente foi alcançado. A suspensão do despejo foi acordada por enquanto, mas não sabemos até quando.
Entre nossas reivindicações está também a questão da negociação da usina hidrelétrica Itaipu Binacional, já que 2023 será o ano de novos acordos relativos à sua base financeira. Estamos pedindo a representação de nosso setor popular nas negociações e estamos defendendo a soberania da Itaipu e a soberania energética do povo paraguaio. A Rota Bioceânica, que vem do Brasil e vai até a Bolívia, também é um assunto de alerta, pois atravessa as comunidades indígenas e as destrói totalmente.
Também exigimos políticas públicas na questão da produção, pois a mudança climática está sendo fortemente sentida em nosso país. Estamos passando por secas na época de produção, perdendo sementes e produções. Os grandes produtores têm subsídios, enquanto as organizações camponesas, indígenas e populares não têm nenhuma resposta do governo. Ainda não conseguimos uma política pública para garantir a produção camponesa indígena para além das políticas de assistência e distribuição de cestas básicas de alimentos por breves períodos.
A mudança climática também afeta a vida das mulheres. Nossa economia feminista e solidária, com as feiras locais e a venda de produtos, é nossa forma de renda. Mas, agora que não temos produção, nem sementes, nem insumos para o artesanato, a pobreza afeta muito mais a nós, mulheres, especialmente as mulheres indígenas.
Organizaçãomassiva
A participação dos povos indígenas nessas luta prolongada foi bem impactante. A força de organização conjunta dos movimentos sociais urbanos, camponeses e indígenas se dá 20 anos após o processo de articulação contra a privatização, em 2002, quando seis leis sobre privatizações estavam sendo discutidas simultaneamente no Parlamento. De lá até agora, houve centenas de mobilizações de todos os tipos, com a questão central da terra e da reforma agrária. “Mas, agora, uma luta articulada volta a acontecer.
Já estávamos fartas, e as pessoas estavam muito satisfeitas por terem contribuído com essa luta corpo a corpo. Quando o povo se cansa de todas essas injustiças, assim como nós neste momento, quando ele se levanta, quando ergue sua voz, não tem ninguém que possa dizer “chega” até que ele alcance seu objetivo. O fator subjetivo de fortalecimento de um sujeito político coletivo é fundamental para o campesinato.
Essa relação machista da qual nos queixamos sobre nossos parceiros é a mesma relação que o Estado tem com o povo. Em muitos meios de comunicação noticiou-se que essa luta teve a cara das mulheres. Muitas mulheres estão no enfrentamento nos assentamentos, nas comissões sem-terra, nos assentamentos urbanos, nas comunidades indígenas. As organizações mistas que estavam conosco no acampamento falavam muito sobre questões de violência durante as assembleias populares. Essa preocupação com as questões feministas em espaços mistos é algo novo e muito interessante.
Março, além de ser o mês das mulheres, é um mês histórico de luta para o campesinato. A primeira grande marcha camponesa após o fim da ditadura aconteceu em março de 1994 e reuniu 50 mil camponeses em Assunção. Aqui, o dia 8 de março foi o dia da mobilização das mulheres, e as jornadas começaram no dia 9. Foi um exercício de reconhecimento e consideração, que mostra mais um passo dos nossos companheiros homens. Também as companheiras feministas, camponesas e urbanas, que estavam na liderança da mobilização assumiram as propostas das pessoas do campo como suas. Recebemos muita solidariedade por parte das companheiras feministas, em uma conexão promovida em grande parte pela Conamuri.
Nessas jornadas, há um extraordinário protagonismo das companheiras. O acampamento envolve um processo de aprendizado sobre o trabalho coletivo, sobre convivência em situações muito extremas, mas também sobre a resolução coletiva de questões políticas e cotidianas.
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17 de abril, Dia Internacional de Lutas Camponesas
A luta por soberania alimentar, pelos direitos camponeses, por unidade e solidariedade contra a fome marcam a convocação da Via Campesina neste 17 de abril, Dia Internacional de Lutas Camponesas. Desde 1996, a Via Campesina marca essa data para manter viva a memória e para denunciar os agora 26 anos de impunidade do massacre de Eldorado do Carajás, no Brasil, no qual 21 pessoas sem terra foram assassinadas. Ainda hoje, histórias como essas se repetem em países como Colômbia, Paraguai, Filipinas, Brasil e Honduras, onde milhares de pessoas camponesas e indígenas são criminalizadas e assassinadas por defender a terra e os bens comuns para cultivar alimentos saudáveis para seus povos.
Com o lema “30 anos de lutas coletivas, esperança e solidariedade”, a Via Campesina comemora seu nascimento como movimento global e convoca a unidade de ação em todo o mundo. Ações simbólicas estão previstas durante todo o mês de abril, como donações de alimentos, feiras, debates, plantio de árvores nativas, intercâmbio de sementes. As ações são parte da denúncia ao sistema alimentar industrial e ao agronegócio.
Bernarda Pesoa é do povo Toba Qon, trabalha com comunicação e cultura na Conamuri e atualmente é coordenadora departamental da organização em Presidente Hayes. Alicia Amarilla vive no departamento de Caaguazú e faz parte da direção nacional da Conamuri. Perla Álvarez Britez vive em Caaguazú e participa da Via Campesina a nível regional e internacional como representante da Conamuri.