Um dos objetivos principais da Escola Internacional de Organização Feminista “Berta Cáceres” (IFOS) é desenvolver metodologias e espaços de debate para construir um sentido comum de sujeito político feminista. Nesse sentido, o sujeito político feminista seria a identidade coletiva, baseada nos legados das lutas feministas populares contra o sistema capitalista, racista e patriarcal. Essa definição não é estática. Foi sendo elaborada como parte do processo da Escola e a partir das concepções das diferentes organizações que a compõem.
O processo de reflexão e elaboração mais recente se deu em uma série de debates com representantes da Jornada Continental pela Democracia e contra o Neoliberalismo, composta por militantes da Marcha Mundial das Mulheres (MMM), Jubileu Sul, Amigos da Terra América Latina e Caribe (Atalc), Coordenação Latino-Americana de Organizações do Campo (CLOC-Via Campesina), Grassroots Global Justice(GGJ), Alba Movimentos e Capítulo Cubano de Movimentos Sociais. Mensalmente ao longo de 2024, as militantes discutiram as compreensões e usos do sujeito político feminista enquanto categoria no trabalho das organizações e quais elementos o constituem.
Era necessário, então, ter uma metodologia de sistematização e síntese desse debate que refletisse a diversidade do tema e do coletivo político que compõe a escola. Carmen Díaz, militante da MMM e integrante da comissão metodológica da IFOS, juntamente com Ana Karen Navarro e Nátaly Nunõ, estudantes da Universidade Jesuíta de Guadalajara, participaram desse ciclo de debates com a tarefa de sistematizar uma síntese do processo.
Para refletir a diversidade e coletividade do debate, foi proposta a elaboração de um mapa mental que pudesse organizar aspectos e complexidades do sentido do sujeito político feminista. “Essa proposta dos mapas surgiu porque, como estudantes, eles já eram muito úteis para nós ao apresentar informações mais complexas. Fizemos a proposta ao grupo para ter um retorno; se não fosse uma boa ideia, faríamos de outra forma. Acho que isso tem muito a ver com a educação popular feminista, de ir experimentando e praticando. E foi assim que pudemos ver o que funcionava e o que não”, explica Nátaly.
O mapa foi apresentado pela primeira vez durante a edição presencial da Escola para Facilitadoras, que aconteceu em agosto desse ano, em Honduras. Uma cópia física em papel e cartolina foi produzido e exposto durante uma das sessões. Além disso, a versão digital está aberta para que participantes da Escola possam navegar, debater, fazer comentários, em um processo permanente e vivo.
Sandra Morán, coordenadora da IFOS, constantemente relembra que uma força desse processo de educação popular feminista está na capacidade de sistematização e organização dos debates em memória documentada. Sobre isso, Carmen acrescenta que “um dos problemas que temos nos movimentos é que, embora tenhamos muito conhecimento, experiência e sabedoria acumulados, temos muito pouco tempo para sistematizá-los. O que é interessante nos mapas é que eles estão em movimento e as conexões podem ser reconfiguradas dependendo do que queremos explicar. A contribuição desse processo é que agora temos uma memória dessas discussões em um formato diferente daquele que costumamos usar, que são as relatorias, mais difíceis de consultar”.
Todo esse ciclo de debate e síntese parte diretamente dos documentos produzidos a partir da primeira edição da Escola, em 2021. O objetivo, segundo Carmen, é recuperar os acúmulos do processo: “A ideia é que isso nos permita chegar ao final do ano com um novo documento, capaz de seguir alimentando essa construção teórica que faz sentido para nós quando falamos de construção de movimento e de sujeito político”.
A participação das sistematizadoras foi um exercício prático da metologia feminista que organizava a própria discussão, como o fato de ser um processo de elaboração coletivo. Era importante que a síntese refletisse da forma mais próxima possível o que foi discutido, sem a tentação de que o ponto de vista final seja o ponto de vista de quem escreve. “Acredito que esse seja um desafio para quem está na tarefa de fazer a síntese. Como tornar isso suficientemente sucinto para que não gere outra discussão de uma hora, mas também suficientemente amplo para que as discussões que não foram resolvidas possam ser retomadas ao iniciar a próxima discussão. O que as companheiras nos disseram foi muito bom: ‘reconhecemos nossas palavras, nossas inquietações e nossas contribuições nessas sistematizações’”, nos conta Carmen.
Karen conta como o trabalho foi de aprendizado a partir da prática, inclusive de temas e discussões as quais elas não estavam familiarizadas. Se surgia uma tensão no grupo, a primeira resposta da dupla podia ser debater entre si para tentar encontrar soluções. “Mas, no final, percebemos qual era o objetivo de fazer essa síntese, que não era desfazer todos os nós que tinham aparecido, e sim mostrar que eles existiam”, explica Karen.
Outro aspecto desafiador desse trabalho foi garantir justiça linguística em um processo circular entre debates e síntese realizado com pessoas falantes de diversos idiomas. Nátaly conta como aprender o significado e a importância da justiça linguística mudou sua maneira de ver o processo. “Quando você se sente interpelado por essas questões, elas ganham dimensão e importância, e até mesmo compromisso político, que vai além de um conceito ou de uma teoria. Para mim, esse foi o momento mais importante, quando nos conscientizamos sobre isso”, compartilha.
A construção do mapa apresentou novas possibilidades teóricas e metodológicas para a construção do sujeito político a partir da experiência dos movimentos sociais. As categorias de cores do mapa indicam os temas de cada elemento. Os elementos em verde falam, por exemplo, sobre os pontos de partida nomeados durante o processo de elaboração. Os em roxo, indicam aspectos da construção de movimento. E os rosa, apresentam perguntas para reflexões futuras. Esses elementos apontam contribuições do feminismo para essa concepção do sujeito político, discussões sobre educação popular, pesquisa feminista e como essas duas se articulam, entre outros.
O mapa não é um produto final, mas um subsídio para que diferentes materiais para a educação popular feminista sejam produzidos. A equipe compartilhou que a última parte desse processo será definir coletivamente como as informações construídas serão contadas, a partir de quais possibilidades narrativas. Karen pensa, por exemplo, na produção de podcasts, infográficos, textos e outros materiais diversos, buscando “traduzir essas informações para aquelas que não participaram de todo o processo”. Algumas reflexões sobre como ampliar o acesso ao mapa e ao seu conteúdo já estão sendo feitas. Além disso, durante a IFOS para Facilitadoras, Karen e Nátaly compartilharam um infográfico com instruções básicas de como elaborar um mapa mental para que essa ferramenta possa ser replicada.