“Eu sinto que a Escola Continental, assim como outras escolas já realizadas pelos continentes, está empoderando mulheres, especialmente as mulheres camponesas, que fazem muitas coisas”. Essa foi a reflexão de Susan Owiti sobre a iniciativa das mulheres camponesas que, neste ano de 2024, realizaram pela primeira vez uma série coordenada de Escolas Continentais de Mulheres da Via Campesina. Susan é integrante da Comissão Coordenadora Internacional (CCI) da Via Campesina (LVC) e organizadora da edição africana da escola, que reuniu cerca de 60 mulheres no Togo.
Organizadas pela Articulação de Mulheres da Via Campesina, as escolas continentais cumprem o importante papel de desenvolver um feminismo camponês e popular capaz de enfrentar os dilemas dos territórios: “Acho que há coisas interessantes vindo das mulheres, Isso se relaciona com algumas lutas que estamos travando como mulheres camponesas da Via Campesina, porque, em nossa região, é notável que as mulheres ainda não possam acessar a terra, e sabemos que as principais produtoras de alimentos são as mulheres”, diz Susan. Por isso, segue ela, “esse espaço está empoderando mulheres para entenderem seus direitos e para verem como o sistema foi estruturado com base na exploração das mulheres”.
Trechos deste texto estão presentes em áudio no programa de rádio Fúria Feminista, produzido pela Rádio Mundo Real, Capire e a Marcha Mundial das Mulheres do Brasil e disponível em espanhol. Com o título “Juntas”, o episódio em questão tratou da potência de diversos encontros e atividades de formação feministas ocorridos em 2024.
Um processo de articulação internacional
Yolanda Areas Blass, da Nicarágua, faz parte da Coordenação Latino-americana de Organizações do Campo (CLOC-LVC) e também da Articulação de Mulheres da Via. Ela conta como as mulheres latino-americanas e caribenhas da organização realizaram a 6ª edição de sua Escola Continental em maio de 2024, na República Dominicana. As escolas das mulheres da CLOC-LVC foram um exemplo para as regiões que organizaram sua primeira edição neste ano. “Nós, nas Américas, temos essa diferença ou particularidade de que fazemos escolas de formação há muitos anos”, explica Yolanda, e continua: “hoje, acreditamos que definir uma estratégia para o desenvolvimento das escolas de formação é um salto qualitativo que a Articulação de Mulheres da Via Campesina está dando em nível internacional”.
“Antes, cada região na Via Campesina realizava seus próprios processos de formação. Agora, conseguimos fortalecer o sistema de escolas da Articulação de Mulheres a partir da primeira Escola Internacional de Mulheres, que foi realizada na África, onde avançamos globalmente no debate sobre feminismo camponês e popular e sobre a participação política da mulher”, explica Yolanda. Nas escolas, as participantes debatem sobre o papel político das mulheres camponesas na construção da soberania alimentar e de um mundo livre de violência.
A militante Siti Inayah, da Indonésia, compartilha sua avaliação dos desdobramentos da Escola Internacional ocorrida em 2023 em Moçambique, no continente africano: “parte do material apresentado na África no ano passado foi disseminado para representantes de mulheres agricultoras que estavam presentes, para que fosse posteriormente utilizado nas escolas nacionais de mulheres camponesas de cada organização que integra a Via Campesina. A sustentabilidade das escolas em níveis internacional e nacional é uma boa prática para alinhar a ideologia da luta da Via Campesina, em particular nos movimentos de feminismo camponês popular”.
Experiências nos continentes
Siti também conta sobre a escola realizada entre 19 e 26 de setembro em Bangkok, Tailândia, reunindo mulheres de 13 países do continente asiático. Segundo ela, além dos temas já mencionados, a escola buscou promover uma reflexão comum sobre conceitos-chave para a Via Campesina, como soberania alimentar, agroecologia, a Declaração dos Direitos Camponeses, reforma agrária, preservação de sementes e da biodiversidade.
A participação nas escolas continentais é de mulheres diversas, que assim se fortalecem para replicar formações e debates em âmbito local, assim como para aprofundar a conexão entre agendas locais e uma visão global. A iniciativa também é uma aposta por impulsionar a construção do feminismo na Via Campesina. Como diz Yolanda, “As escolas proporcionam conhecimento, e o conhecimento é poder. Se as mulheres têm conhecimento e estão informadas, têm poder para debater sobre feminismo camponês e popular no âmbito da Via Campesina. Antes, não podíamos fazer isso, porque nossas reflexões não chegavam ao ponto de reconhecer que toda ação que realizamos na defesa de nossos direitos é feminismo puro, é feminismo em sua essência”. As escolas buscam fortalecer o movimento, assim como as alianças políticas.
Para as mulheres da Europa e da Região Árabe e do Norte da África (ARNA, sigla em inglês), a escola ultrapassou os limites continentais. Foi, assim, uma oportunidade de estreitar laços entre regiões. A escola também fortaleceu a dinâmica das companheiras de ARNA, que se organizaram regionalmente há pouco tempo e que vêm enfrentando desafios profundos devido aos ataques colonialistas israelenses. Foram realizadas três sessões virtuais e um encontro presencial de cinco dias, na Galícia.
No continente africano, onde a escola foi inteiramente presencial, a preparação trouxe alguns desafios relacionados à conectividade. “Às vezes, aquelas que têm uma conexão ruim tentam o máximo que podem, mas, vocês sabem, o problema com a internet pode decepcionar. Devo dizer que isso é um processo de aprendizado para nós”, diz Susan Owiti. Além disso, a equipe de formadoras também vem refletindo sobre as escolhas de currículo, considerando o volume de temas e reflexões mobilizados no espaço: “Um dos principais desafios na Escola Continental que realizamos recentemente no Togo foi o tempo. Tínhamos muitos assuntos interessantes para discutir na escola. Talvez, dedicando mais tempo a algumas das questões, poderíamos ter debatido de forma diferente”, avaliou Susan.
A militante também falou sobre elementos como a pressão religiosa sobre o sistema patriarcal e as normas culturais que oprimem as mulheres no continente africano e limitam sua participação política. “Quando nos encontramos com as companheiras nesse espaço, tentamos abordar e entender como garantir que essas questões não nos limitem, como mulheres, na expressão de nossas lutas”. A escola é, também, segundo ela, um espaço para compartilhar informações sobre instrumentos de reivindicação, políticas e direitos já garantidos e debater essa ausência de informações, especialmente entre as mulheres rurais. “Acho que foi um espaço muito bonito e não deveria ser pontual, mas sim uma escola contínua”, avalia, propondo um processo de seguimento.
Protagonismo e auto-organização
A permanência de espaços de formação feminista fortalece as militantes camponesas em seu protagonismo político. “Nós, mulheres, especialmente as camponesas, às vezes ficamos com medo de compartilhar ou dar destaque às questões que estamos enfrentando”, pondera Susan. “A escola vai ajudar as mulheres a se entenderem melhor, a compreenderem nitidamente nossa luta e também a identificar quem são nossos inimigos”, afirma.
“Foi maravilhoso encontrar companheiras de diferentes regiões e falantes de distintos idiomas e, no fim do dia, entendermos nossas lutas e a nós mesmas como irmãs, como as mulheres da Via Campesina”, declara Susan, demonstrando a importância do internacionalismo na luta feminista e camponesa. Estar entre companheiras de diversas partes dos continentes e do mundo é o que permite ver semelhanças entre desafios e lutas locais: “assim você entende que, quando nos unimos em uma só voz, é mais fácil colocarmos nossas questões e chegarmos a um entendimento comum”.
Algo parecido diz Yolanda: “as escolas são um espaço onde convergimos mulheres de diferentes culturas e de diferentes povos que têm realidades comuns e, portanto, buscam soluções comuns”. Assim, as mulheres da Via Campesina fortalecem o feminismo necessário para globalizar a luta e a esperança.