Silvia Ribeiro: “Ninguém pode viver sem comida”

22/04/2022 |

Por Capire

Leia a entrevista de Silvia Ribeiro sobre o poder das empresas transnacionais do setor agroalimentar e a agricultura 4.0 no podcast Fúria Feminista

Questionar o poder das empresas transnacionais nas nossas vidas é questionar a produção e reprodução de muitos âmbitos da nossa sociedade. Como vivemos, como nos vestimos, como nos relacionamos, trabalhamos e entendemos a política, tudo isso tem implicações que passam pelo poder corporativo, que precariza e explora nossas vidas. Como comemos e o que comemos, também.

O novo episódio do podcast Fúria Feminista fala sobre a indústria alimentícia, seus impactos na vida da população rural e urbana, bem como as lutas para detê-la e, no lugar dela, impulsionar a soberania alimentar, a agroecologia e a justiça ambiental. O assunto integra a agenda de lutas da Marcha Mundial das Mulheres, que convoca o Dia de Solidariedade Feminista Internacional contra as Empresas Transnacionais no dia 24 de abril. Fúria Feminista é um programa de rádio bilíngue realizado pela Rádio Mundo Real e pela Marcha Mundial das Mulheres do Brasil.

Reproduzimos no Capire a entrevista concedida por Silvia Ribeiro para o podcast. Silvia Ribeiro vive no México, é pesquisadora e ativista ambiental uruguaia e integrante do Grupo de Ação sobre Erosão, Tecnologia e Concentração (Grupo ETC). O Grupo ETC se dedica, entre outras coisas, a pesquisar a configuração corporativa e o impacto das novas tecnologias na agricultura e na alimentação.

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Para começar a desvendar a ligação entre alimentação e as empresas transnacionais, gostaríamos de saber quais são as principais empresas transnacionais do setor alimentício hoje e o que elas têm em comum.

O que as principais empresas do setor agroalimentar têm em comum é que são empresas gigantes, e que são poucas as empresas que realmente controlam cada uma das etapas de toda a cadeia de abastecimento agrícola até chegar ao que comemos, quando se trata de um produto industrializado. Há algumas dessas empresas das quais ouvimos falar muito, como a Monsanto (agora propriedade da Bayer) e a Syngenta, que estão no início da cadeia. Na outra ponta da cadeia está o Walmart, um supermercado que é, no momento, a maior empresa do mundo. Entre a Monsanto e o Walmart, há uma cadeia na qual cada elo, desde os insumos agrícolas, as sementes e os agrotóxicos utilizados até a distribuição, em cada um deles, há quatro ou cinco empresas.

A Monsanto/Bayer são as “iniciais”, e depois as que se seguem são as distribuidoras de cereais, que na América Latina têm um peso enorme, como a Cargill e a Bunge. As seguintes são as empresas de processamento de alimentos, entre as quais as maiores do mundo são a Nestlé, Danone, Pepsi, Coca-Cola, e são as que monopolizam a água. Depois dessas, vêm os supermercados, entre os quais o Walmart está muito na frente, mas existem outros, como o Carrefour, Tesco, etc. O mais grave é que, em cada um desses passos, existem cerca de quatro a dez empresas que controlam mais da metade do mercado. Em alguns setores, isso já é mais concentrado, como no setor de sementes e de agrotóxicos, no qual pouquíssimas empresas controlam 80% do mercado global. O mais absurdo da presença das transnacionais no setor agrícola e alimentício é que não se trata de um ramo industrial qualquer. Ninguém pode viver sem comida.

Destaque: Paradoxalmente, a maior parte da humanidade não é alimentada pelas cadeias industriais, mas sim pelo que obtém através dos pequenos produtores e produtoras de alimentos, camponeses, pecuaristas, pescadores e pescadoras artesanais, hortas urbanas. É isso o que dá de comer para a maioria.

A presença das empresas transnacionais no setor agroalimentar faz com que elas se apropriem de uma imensa quantidade de terra, água e energia. Na realidade, na maioria dos casos, elas não produzem comida; o que elas mais produzem são commodities, ou seja, mercadorias que serão industrializadas. Isso é muito grave porque é um dos setores fundamentais da sobrevivência das pessoas em todo o planeta, e as empresas que o controlam não estão nada interessadas na alimentação, estão interessadas em ganhar mais dinheiro.

Então, o que nós podemos dizer diante do argumento que já ouvimos várias vezes sobre o papel dessas empresas transnacionais vinculadas ao setor alimentício no aumento da fome?

Na questão da fome, temos a pandemia, que é um exemplo, e a recente guerra na Ucrânia. Não deveria existir fome, mas o que as empresas fazem é tirar proveito de qualquer situação de conflito para especular sobre a escassez. Em todo o mundo, o preço do trigo e do milho subiu entre 20 e 30%, e em alguns lugares 40%. Mas, na verdade, o que a Rússia e a Ucrânia fornecem do trigo e do milho do mundo é cerca de 5% do consumo. O que estava na última colheita nem acabou ainda. Mas essas empresas controlam os preços porque têm a maioria em cada setor.

Destaque (letras pequenas): Sempre que há uma situação de restrição, seja por causa da pandemia ou de um conflito bélico, o que eles fazem é especular e aumentar exponencialmente os preços. Por um lado, isso afeta as pessoas que têm que comprar alimentos; e, por outro lado, como a agricultura industrial possui mais de 75% das terras agrícolas do mundo, as camponesas e camponeses que querem produzir alimentos saudáveis e acessíveis não têm como fazer isso.

Sempre há essa relação entre a especulação das empresas no mercado e o poder que elas têm sobre os territórios, seja em relação à terra, à água, à energia.

Associado ao fato de que as empresas transnacionais estão em toda a cadeia, do campo até o prato, queremos saber especificamente como essas empresas se comportam no agronegócio.

Nos primeiros pontos da cadeia, que são as sementes, os agroquímicos e os agrotóxicos, a concentração corporativa é enorme. Quatro empresas (Bayer/Monsanto, Syngenta, que agora é chinesa, Corteva, que é a fusão da Dupont e da Dow, e BASF) têm mais de 60% do mercado mundial de agrotóxicos e sementes de todos os tipos. Eles controlam todas as sementes transgênicas, que são produzidas pelas empresas para aumentar a dependência de agrotóxicos.

A maioria das sementes transgênicas é tolerante a herbicidas tóxicos fabricados pela mesma empresa ou criados originalmente por ela. As empresas aumentaram a produção de sementes transgênicas apesar de elas terem um rendimento inferior ao das sementes híbridas e apesar de elas exigirem um aumento enorme de produtos tóxicos.

Como as empresas transnacionais de supermercados ou hipermercados se inserem nessa cadeia? Qual papel desempenham até chegar nas consumidoras e consumidores finais?

Durante muito tempo, o que aconteceu é que a maior parte da comida, especialmente os alimentos frescos, era comprada perto do local onde era produzida. Houve todo um estímulo para controlar o mercado de venda de alimentos e centralizá-lo através dos hiper e supermercados. Para começar, eles tentaram eliminar todos os pequenos comércios de alimentos em áreas urbanizadas através da concorrência desleal.

À medida que os pequenos comerciantes de alimentos desaparecem, o que resta é apenas o supermercado, que, ao ter um relativo monopólio ou dividir a área com outros supermercados igualmente grandes, pode controlar o preço e também a oferta. O Walmart e o Carrefour dividiram os países e as áreas onde se encontram, mas tudo com base na eliminação de pequenos comerciantes, por um lado, e minando a possibilidade de escolha dos alimentos que queremos comer, por outro.

O tempo todo há uma manipulação, até que se produza uma certa dependência, a partir da qual eles estão no controle. Esse é o papel dos grandes supermercados: eliminar cada vez mais a produção local ou o pequeno comércio local. Isso aumenta a quantidade de transporte, de energia para refrigeração, de embalagens.

Há algum tempo, os supermercados também começaram a fazer acordos com produtores menores, impondo condições de qualidade e entrega que, em muitos casos, são impossíveis de serem cumpridas. Os grandes supermercados são espaços onde somente as grandes empresas e as multinacionais podem chegar confortavelmente.

Agora, além disso, descobrimos que há outro tipo de empresa transnacional também envolvida, gerenciando e controlando alimentos: as transnacionais da tecnologia. Como elas chegam à nossa alimentação e que papel elas exercem?

Isso é algo que já tinha começado antes da pandemia, mas a pandemia aumentou muito o nível de participação das empresas digitais, tanto no setor agrícola quanto na cadeia de distribuição. É o último grande setor industrial alcançado pela digitalização.

Há um movimento em direção a uma maior automatização do negócio agrícola. De drones a tratores automatizados, tudo está sendo utilizado. Também em todos os pontos da cadeia de distribuição, tudo é apresentado através de plataformas on-line. Com a pandemia, o que está acontecendo é que há todo um discurso das empresas do agronegócio e de alimentos de que as compras on-line são mais seguras.

As empresas digitais estão começando a entrar, através de supostos serviços, na alimentação ou na agricultura. Google, Apple, Facebook, Amazon, Microsoft, Alibaba e Tencent. Essas sete empresas são as maiores do mundo atualmente em termos de capitalização de mercado. Por outro lado, duas delas, a Apple e a Amazon, também já estão entre as maiores do mundo em vendas. As empresas têm uma enorme quantidade de dinheiro disponível, e um dos investimentos que fazem é justamente nesses setores tão fundamentais, a agricultura e a alimentação.

Além disso, eles têm muito mais controle sobre os nossos comportamentos em relação à alimentação. Toda a indústria digital nesse momento tem seu ponto nevrálgico no que chamamos de extrativismo de dados. Eles têm informações sobre as formas de produção, sobre o território, as fontes de água, a terra, mas também dados sobre como as mercadorias são movimentadas, para onde vão, quem comprou, onde entraram, até mesmo quem acaba recebendo a comida e como ela chega às casas.

O principal valor desses dados é coletivo: poder ver as grandes tendências coletivas, e também poder, através de formas individuais – como o gerenciamento de dados cruzados sobre saúde, trabalho, hobbies, gostos – criar mercados personalizados.

A maior parte do dinheiro dessas empresas é feita com esse tipo de dado, que são vendidos para comercialização, para marketing.

Destaque (letras pequenas): O tema da alimentação é ainda mais importante, pois os comportamentos alimentares não têm só um valor econômico, mas também têm relação e um valor com respeito à saúde. Toda essa indústria de persuasão e marketing personalizado e por grupos é uma das maiores atualmente em termos de empresas de tecnologia.

É realmente um controle muito perigoso, que vai desde os territórios e recursos até os movimentos que fazemos, as relações que estabelecemos, os alimentos que comemos e o que isso significa em termos de saúde.

A tecnificação do campo, depois a venda on-line em plataformas, tudo isso faz parte de um grande guarda-chuva chamado “agricultura 4.0”, que os movimentos sociais e populares denunciam como uma falsa solução. O que isso significa?

Querem apresentar a agricultura 4.0 como se isso pudesse economizar energia ou diminuir a mudança climática, ou gerasse menos necessidade transporte, ou que as pessoas tivessem mais escolha, quando é o contrário. O que vemos é cada vez mais alienação, ou seja, uma separação entre as pessoas e a forma como e onde o que se produz é produzido.

Não é apenas uma falsa solução, é algo realmente prejudicial. A agricultura digitalizada envolve uma enorme quantidade de energia que, em muitos casos, é invisível. A infra-estrutura, ou seja, o uso de programas de inteligência artificial para processar a enorme quantidade de dados, é um dos maiores consumidores de energia do mundo.

A separação entre produtoras e consumidores significa que cada vez há menos pessoas no campo, seja por causa da automatização ou por causa da expulsão produzida pelo mercado. Esse tipo de coisa cria mais problemas de mudança climática e, devido à invasão de territórios, cria mais fome. E, definitivamente, cria uma distância maior entre nós que estamos na cidade e a produção, mesmo que haja uma ilusão de que, com a virtualidade, nós podemos saber a origem de tudo.

Os movimentos sociais e populares ressaltam, defendem e colocam em prática outros vínculos com a alimentação, outras formas de produzir. Você pode falar sobre alguns deles?

Nosso trabalho de pesquisa sobre quem produz os alimentos tem mais de 20 anos. Também temos colaborado com muitas outras organizações, como GRAIN e Amigos da Terra. Temos dados concretos de que 70% dos alimentos do mundo são produzidos por pequenas e pequenos produtores, sistemas agroflorestais, pesca artesanal e hortas urbanas – com menos de 25% da terra e da água e muito menos de 10% da energia utilizada na agricultura em grande escala.

É como propõem os movimentos sociais, se houvesse uma reforma agrária em que houvesse maior acesso à terra, com apoio, com mais recursos, isso significaria que seria possível não apenas produzir comida para toda a população, mas principalmente com uma qualidade completamente diferente.

São justamente as e os agricultores locais, camponesas e indígenas que, em situações de crise como a pandemia, conseguiram até mesmo compartilhar, inclusive de forma gratuita e solidária, sua produção no campo com outras pessoas que não tinham comida. Não quero dar uma visão romantizada, todos nós passamos por uma situação difícil durante a pandemia, mas são essas experiências, como, por exemplo dos acampamentos do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) no Brasil ou dos territórios indígenas na Colômbia e Equador, que criaram relações de solidariedade em situações de crise e possibilitaram que as pessoas sobrevivessem.

Uma das principais causas dos impactos da pandemia tem sido as comorbidades, o grande número de doenças relacionadas com o sistema agroalimentar animal industrial. É imprescindível construir, a partir dessas comunidades e movimentos, outras formas de produção sem agrotóxicos, com base na agricultura camponesa e ecológica, e formas de se relacionar com a terra e entre o campo e a cidade.

O que estamos falando tem a ver com o resgate de todo o setor da saúde, dos cuidados e da alimentação, no qual, desde a Idade Média, como diz a Silvia Federici, há um esforço para invisibilizar e associar de forma natural e biológica as mulheres. Com esse mesmo impulso de criar fontes de alimentação para romper com o domínio das transnacionais, devemos também recuperar e reformular o conceito de cuidado, de alimentação e toda a esfera doméstica e de saúde de forma coletiva, com muitas mãos. Para que possamos chegar a um acordo de que elas não estão biologicamente associadas às mulheres, que não devem ser invisibilizadas e nem ser objeto de dominação.

Entrevista conduzida pela Rádio Mundo Real
Edição e revisão da tradução por Helena Zelic
Tradução do espanhol por Luíza Mançano

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