Sanaa Seif: “É preciso lutar por tudo, por cada mínimo direito”

05/12/2023 |

Entrevista conduzida por Bianca Pessoa

Leia e ouça a entrevista com a militante egípcia que atua na defesa da democracia e no combate às prisões políticas

Gettyimages

Desde 1952, quando a ocupação britânica deixou o Egito, o país vem sendo governado pelos militares. A ditadura de Hosni Mubarak durou 30 anos e foi derrubada depois do levante de 2011, que se iniciou no dia 25 de janeiro, em uma data conhecida como “dia de fúria”. Aconteceram novas eleições em 2012, que levaram à vitória de Mohamed Morsi, do partido islamista Irmandade Muçulmana. Seu mandato durou um ano, até ser interrompido pelo golpe militar liderado pelo general Abdel Fattah Al-Sisi em 2013. Desde então, a população egípcia vive sob um regime autoritário e antidemocrático.

Sanaa Seif é cineasta e militante egípcia e britânica. Ela estava presente durante o levante de 2011 e tem feito uma campanha de defesa a libertação de seu irmão, Alaa Abd Al-Fattah, e outros prisioneiros políticos do regime de Al-Sisi. Suas ações em defesa desses militantes resultaram na prisão dela própria em três ocasiões. Nesta entrevista, realizada em junho de 2023, Sanaa fala sobre a atual conjuntura política do Egito e sobre sua campanha permanente pela libertação de pessoas defensoras dos direitos humanos no país. Ouça abaixo a entrevista em inglês:

Enquanto ocorriam os protestos de 2011, você acompanhou seus pais e irmãos na luta e se tornou ativa no movimento a partir dali. Qual é a sua leitura das manifestações desse período? O que significou para a organização e reorganização dos movimentos no país?

As principais palavras de ordem ditas nas ruas eram “pão, liberdade e justiça social”. O principal objetivo era estabelecer a democracia, e não temos isso. E aí os movimentos de 2011 foram derrotados. A inflação é galopante, os preços estão muito mais altos, o valor do dinheiro caiu muito. A violência policial é muito presente.

Mas ainda foi um momento muito significativo e importante da história do nosso país, porque foi muito forte, mas muito pacífico. Foi um momento de possibilidade e potencial em nosso país, mas cometemos diversos erros coletivamente — sobretudo os grupos políticos organizados. Não defendemos o valor da democracia e, ao lidar com a complexidade de nosso país e de nossa sociedade, só queríamos que o exército resolvesse nossos problemas sociais para nós. Portanto, naturalmente, o exército se aproveitou disso. O regime militar de agora não é disfarçado como antes, e Abdul Fatah Khalil Al-Sisi já é nosso presidente há dez anos.

No Egito, é constante esse dilema político entre ter grupos islâmicos ou os militares no poder. Esses são os grupos organizados. Qualquer outro — progressista, de esquerda, conservador, qualquer grupo civil ou radical como nós — é muito pequeno e não muito organizado, porque o Estado não permite. Então era meio que sabido que, uma vez que as sociedades se abrissem, os islâmicos seriam a oposição mais popular. Eles venceram as eleições, conquistaram a maioria no parlamento e na presidência, e governaram mal durante um ano. Eles vieram depois da revolução, mas não fizeram nenhuma reforma na polícia e continuaram com as leis ditatoriais contra a população cristã… Cada coisa ruim que tinha levado à revolução continuou, mas em vez de ser em nome dos militares, passou a ser em nome do Islã.

O exército usou isso como uma oportunidade para dar um golpe e basicamente descartar a democracia. Naturalmente, quando o exército voltou ao poder, oprimiu todo mundo sob a justificativa de estar combatendo o terrorismo e o extremismo. O exército se apresentou como laico, mas, do ponto de vista religioso, era tão conservador quanto a Irmandade Muçulmana e também igualmente sectário.

Com um governo antidemocrático, há muito em jogo para além da falta de democracia em si. Você pode nos oferecer um breve panorama da atual conjuntura política do seu país?

Com relação à liberdade pessoal, o Estado tem alguma propaganda contra o assédio sexual, que está sendo criminalizado por lei. Mas a violência de fato contra as mulheres aumentou. Hoje há muitos casos de meninas presas porque fizeram vídeos no TikTok. Tem um aspecto de classe aí. Se é uma menina de classe média alta que fala inglês e faz esses vídeos e é influenciadora em uma das regiões chiques do Egito, é aceitável. Mas se é uma menina de classe média baixa que faz esses vídeos, ela é presa por prostituição. Nosso procurador-geral vem fazendo declarações públicas sobre valores familiares. Então meninas, a comunidade LGBT e qualquer outra minoria são muito mais perseguidas.

Na perspectiva financeira, nossos militares estão envolvidos em todo tipo de negócio, até mesmo em empresas privadas que fazem parte do serviço de inteligência geral. Tem um caso bastante famoso de um homem que se recusou a entregar sua empresa para os militares e acabou preso, junto do filho, por dois anos. Muitas comunidades foram expulsas porque os militares decidiram construir um megaprojeto no território. A empresa italiana de petróleo Eni começou a extrair gás natural liquefeito (GNL) no Egito, assim como a British Petroleum. Não temos liberdade de imprensa, então não temos muita informação, mas as comunidades no entorno de usinas de GNL estão denunciando a poluição da água. Pescadores afirmam que não há mais peixe nas águas.

Durante as mobilizações de 2011, você e outros militantes atuaram na edição e publicação do jornal independente Al-Gornal. Pode contar sobre essa experiência e sobre ferramentas de comunicação no país?

Temos hoje cerca de três grandes veículos de mídia independente que ainda conseguem operar dentro do país. É um grande desafio fazer isso e muitos jornalistas são presos, mas ainda temos algums remanescentes da sociedade civil que estão na oposição. Antes tínhamos muitos mais veículos de imprensa, jornais e outros. Toda a nossa grande mídia passou a ser controlada pelo serviço de inteligência geral, que também regula os assuntos noticiados.

Em 2011, eu tinha 16 anos. A maior parte do grupo que trabalhava no Al-Gornal tinha a minha idade. Não éramos jornalistas, mas percebemos que aquele era um momento de liberdade que era um tanto excepcional, e queríamos só destacar isso.

Saana Seif

As pessoas falavam livremente na internet, mas nós queríamos uma publicação impressa. Para o conteúdo, criamos uma página no Facebook e fizemos um chamado para artigos. Foi um processo muito inspirador. Era uma publicação mensal e tivemos seis edições. Distribuíamos 25 mil cópias de graça com uma rede de distribuição impressionante. Era um conteúdo muito sério, e o crédito não foi nosso, mas das pessoas que se engajaram conosco.

Durante todos esses anos de participação ativa na militância, você foi presa três vezes. Seu irmão, militante dos direitos humanos no Egito, continua preso ainda hoje. Como têm acontecido as campanhas pela libertação de militantes presos, incluindo seu irmão?

Meu irmão já está preso há nove anos. No início, fazíamos campanha dentro do país, e é assim que acontece no caso da maioria das pessoas presas. Tem muita gente fazendo campanha e defendendo não apenas a libertação de pessoas encarceradas, mas também por melhores condições. É preciso lutar por tudo, por cada mínio direito: para conseguir comida para elas, cartas, para visitá-las. Não se pode considerar nada garantido. Todas as minhas prisões aconteceram porque eu estava defendendo a liberdade do meu irmão e do restante das pessoas presas em geral. O advogado dele foi preso por defendê-lo — ele também é jornalista.

Hoje, minha forma de fazer campanha é com incidência junto a governos ocidentais para tratar da situação dos direitos humanos no Egito. Em Genebra, lutamos para mudar a recomendação de viagem ao Egito, para que se diga que é possível ser preso no país, e que o passaporte não vai proteger você. Isso teve algum êxito e, naturalmente, foi graças à solidariedade de militantes como nós. Estou há um ano no Cairo, mas viajei muito e basicamente tenho feito campanhas fora. Faço questão de ficar no meu país. É um grande risco usar espaços ocidentais para fazer campanha para nós, pessoas egípcias. Então eu decidi fazer isso e ficar no país, para que não haja repercussões contra meu irmão. Na conferência do clima da ONU, a exposição do caso que eu fiz me trouxe alguma proteção. Consigo morar no Cairo, mas ainda é perigoso e podem me prender, mas não vai ser uma decisão fácil. É um risco calculado, onde haverá algum preço político.

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Idioma original: inglês

Traduzida do inglês por Aline Scátola

Edição por Helena Zelic

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