Phakamile Hlubi-Majola (África do Sul): “Nossa ideologia como sindicato tem raízes no socialismo”

09/11/2023 |

Por Capire

Leia e ouça a entrevista com a integrante da União Nacional de Metalúrgicas e Metalúrgicos da África do Sul (Numsa)

Phakamile Hlubi-Majola é porta-voz da União Nacional de Metalúrgicas e Metalúrgicos da África do Sul (Numsa). A organização foi criada em 1987, durante o regime do apartheid, e iniciou com a organização de trabalhadoras e trabalhadores na indústria automobilística, siderúrgica e metalúrgica. Em 2013, durante seu congresso nacional, a união decidiu expandir seu escopo de organização para além das e dos metalúrgicos. Hoje, a Numsa atua como articulação de diversas uniões de trabalhadoras e trabalhadores ligadas a pontos diversos da cadeia de valor, como no transporte, na infraestrutura, na mineração, no transporte coletivo de passageiros, na aviação e no setor energético. A união foi uma das organizações anfitriãs da 3.a Conferência Dilemas da Humanidade, que ocorreu em outubro de 2023 em Joanesburgo, na África do Sul.

Quando a Numsa foi fundada, havia grande agitação social na África do Sul. Phakamile explica que “a organização de trabalhadoras e trabalhadores sul-africanos não era nem mesmo legal, e as demandas que tinham iam além das questões de salário e condições de trabalho. As e os trabalhadores perceberam que, para que seus salários e condições melhorassem, o apartheid precisava ser eliminado”. Nesta entrevista, ela fala sobre a trajetória da Numsa e da luta das e dos trabalhadores na África do Sul, e também sobre a história das mulheres que lutam por liberdade em seu país, além da relação entre a luta sul-africana e a palestina.

“O que está acontecendo na Palestina neste momento é imperdoável. O governo israelense, em nossa opinião, é um Estado de apartheid.”

Phakamile Hlubi-Majola

Com relação à história de Joanesburgo e sua relação direta com a indústria da mineração, qual é a importância de haver uma organização de trabalhadoras e trabalhadores nesses campos tão ligados historicamente?

Exatamente por causa da relação entre esses campos, a Numsa hoje também se organiza no setor da mineração. As pessoas que trabalham em minas na África do Sul ainda estão entre as mais exploradas. O setor cresceu nas costas e às custas do suor do trabalho de pessoas negras que recebiam menos que migalhas e eram forçadas a viver em condições desumanas para que os patrões enriquecessem. Essa é a nossa crise, como Numsa, com o Congresso Nacional Africano (CNA) [partido político no poder desde a libertação do regime do apartheid]. Nós queríamos que o nosso governo assumisse as demandas da classe trabalhadora e implementasse políticas macroeconômicas que promovessem uma transformação fundamental na vida da maioria da população.

A África do Sul é um país com a sociedade mais desigual do mundo. Nosso índice de desemprego, em alguns casos, é comparável ao de países que estão em guerra. Isso indica os fracassos do CNA na transformação das vidas sul-africanas. Quando assumiu o poder, o governo do CNA não usou o poder político para transformar a estrutura da economia, para que mais pessoas negras fossem absorvidas e pudéssemos ter a propriedade dos meios de produção. Nós queríamos um governo sul-africano que nacionalizasse as minas e os minerais, porque, dessa forma, seria possível usar o dinheiro gerado para transformar de fato a vida das pessoas, financiando saúde de qualidade e educação gratuita e de qualidade.

Infelizmente, o governo sul-africano se permitiu ser ditado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e todas essas outras instituições neoliberais de direita. Também privatizou muitos dos setores estatais — e muitos eram, na verdade, grandes geradores de empregos. A Eskom, por exemplo, única empresa de energia elétrica que fornece eletricidade para o país, emprega mais de 30 mil pessoas. Ao privatizar essas instituições, o que acontece é a perda massiva de empregos. Quando o setor privado se envolve, a agenda não é voltada para o desenvolvimento, mas para o lucro.

O capitalismo é a nossa crise. O capitalismo, que sabemos ser incapaz de transformar a vida da maioria da população, está agravando as condições das mesmas pessoas que lutavam por uma vida melhor depois do apartheid.

Durante a Conferência Dilemas da Humanidade, a Numsa distribuiu camisetas com o rosto de Winnie Mandela. Por que ela é um exemplo para a luta? Quais as relações entre ela e o trabalho que a união vem fazendo?

Quando Winnie Mandela morreu, nós a descrevemos como uma liderança do movimento de libertação não organizado, a general que liderou a luta por liberdade. Houve uma época em que muitas lideranças do movimento por libertação estavam presas. Se não estivessem na prisão, estavam no exílio, sendo torturadas ou mortas. Isso criou um vácuo. As pessoas tinham receio de que o movimento pudesse morrer, porque suas lideranças estavam presas, mas Winnie não estava presa. Ela manteve a chama acesa.

Ela organizou atos, marchas… Ela organizava as pessoas nas townships [áreas residenciais urbanas criadas durante o apartheid e reservadas a pessoas não brancas, sobretudo negras] e em Soweto. Ela liderou a luta. Ela era uma grande militante, destemida. Não sei quantas vezes a polícia a prendeu, agrediu e deteve. O fato de se fazer tanto barulho sobre o regime nos anos 1980 se deve a ela e ao quanto ela mobilizava.

Mas ela não era a única mulher na luta. Em 1956, havia mulheres se organizando para marchar contra o governo do apartheid, para acabar com o que se chamava de dompas [passaportes internos]. Era um sistema de caderneta de identidade semelhante ao que a Alemanha nazista desenvolveu para os judeus nos guetos. Era um documento reservado exclusivamente para as pessoas negras, que basicamente limitava qualquer pessoa no país de acordo com onde ela poderia estar. Esse documento dizia, por exemplo, que você só tinha permissão de circular em Joanesburgo. Ele ditava onde você trabalhava, ditava onde você morava e onde você morria. Ele controlava sua vida inteira. Vimos isso como parte da desumanização do sistema do apartheid. Naquele ano, mais de 20 mil mulheres organizaram uma imensa marcha até o Union Buildings [atual sede do gabinete da presidência], que era o parlamento na época, para exigir o fim do dompas. Quando elas chegaram lá, fizeram questão de afirmar ao governo: “Não temos medo de vocês, nós vamos enfrentá-los.”

E hoje, como as lutas das mulheres trabalhadoras estão sendo construídas no país?

Tradicionalmente, os sindicatos de trabalhadoras e trabalhadores da metalurgia e da mineração são dominados pelos homens. Temos, sem dúvida, muitas mulheres militantes, mas, em termos de números, os homens ainda são maioria, e isso é uma coisa que precisamos mudar. As demandas das mulheres, muitas vezes, são como a de mulheres de toda parte: queremos ter segurança no trabalho, queremos estar livres de assédio, queremos oportunidades iguais, salários iguais para trabalhos iguais. Hoje, na África do Sul, as mulheres — sobretudo as mulheres negras — estão entre as que recebem os salários mais baixos.

Um destaque da luta das mulheres na história da Numsa, para mim, seria de 2019, quando houve uma greve em uma empresa de mineração chamada LANXESS, uma multinacional alemã. O que desencadeou a greve foi que uma funcionária estava sofrendo assédio sexual por parte de um dos gerentes da segurança da mina, e os companheiros — seus colegas homens — decidiram realizar um sit-in [forma de protesto de ocupação] em solidariedade a ela, para exigir a demissão do gerente da mina. Durante nove dias, eles dormiram debaixo da terra com ela. A paralisação chamou muito a atenção internacional. Isso levou a uma campanha midiática séria, a ponto de que a gestão na Alemanha ficou envergonhada com toda a cobertura negativa.

Para mim, essa greve é, sem dúvida, um indicativo de um dos elementos muito positivos da Numsa em termos de ser uma organização progressista, cujos membros podem sacrificar nove dias de renda para defender uma posição a respeito do sofrimento de uma mulher que estava sofrendo assédio sexual. Não estou dizendo que somos perfeitos, mas somos uma organização que tem princípios muito fortes em termos da proteção das mulheres, das comunidades LGBTQI e de imigrantes, porque nossa ideologia, como sindicato, tem raízes no socialismo.

Você pode nos contar como a luta por libertação na África do Sul se relaciona com as lutas palestinas?

A questão palestina nos toca fundo no coração. A Numsa tem uma longa trajetória de defesa da Palestina, e continuaremos a defendê-la. O que está acontecendo na Palestina neste momento é imperdoável. O governo israelense, em nossa opinião, é um Estado de apartheid. Eles estão promovendo uma limpeza étnica em massa e tentando aniquilar os palestinos. Nós defenderemos as e os palestinos, acreditamos que eles têm direito de se defender, e devemos fazer o que for necessário para libertá-los. Israel deve ser enfrentado, sofrer sanções e ser banido. Já realizamos muitas campanhas pedindo sanções e a expulsão do embaixador israelense daqui [em 6 de novembro, o governo sul-africano retirou todos os seus diplomatas em Tel Aviv para consulta].

Israel deve ser tratado como um Estado pária da forma como a África do Sul foi tratada.

Não há nenhuma legalidade nem moralidade no que o governo israelense está fazendo. Expressamos nossa solidariedade com o povo palestino da Cisjordânia e de Gaza. A Conferência Dilemas da Humanidade se concentrou bastante na Palestina, e esse foco foi intencional desde o início. A conquista da liberdade em nosso país não foi puramente por nossos próprios esforços, mas também graças à solidariedade internacional. Havia combatentes de Cuba que vinham de seu país para lutar na guerra em Angola contra o governo do apartheid. Essas pessoas morreram e foram enterradas aqui no continente. A África do Sul tem uma imensa dívida com o mundo por sua liberdade, e nós acreditamos que temos uma responsabilidade real com o povo da Palestina para garantir que ele também tenha a experiência da liberdade — e isso deve acontecer já.

Traduzido do inglês por Aline Scátola

Entrevista conduzida por Bianca Pessoa

Editado por Helena Zelic

Artigos Relacionados