Maudy Ucelo:”o bem viver é a relação de respeito e valor que temos com a natureza”

14/06/2024 |

Capire

Leia e escute a entrevista realizada durante o encontro da Escola Internacional de Organização Feminista (IFOS)

Maudy María Ucelo é militante da Marcha Mundial das Mulheres e vive no território Xinka, em Santa María Xalapan, no departamento de Jalapa, região oeste da Guatemala. “Eu me identifico como uma mulher indígena jovem, porque é também a partir daí se dá minha luta nos movimentos sociais e feministas comunitários do meu território”, explica Maudy.

Essa entrevista foi realizada coletivamente por Capire e a Rádio Mundo Real durante o encontro Tecendo Nossas Propostas Emancipatórias da Escola Internacional de Organização Feminista ‘Berta Cáceres’ (IFOS, sigla em inglês), que aconteceu entre os dias 5 a 7 de maio de 2024. Sobre a participação nessa atividade, Maudy contou que se sentiu em sua própria casa ao compartilhar a confiança e energia com outras companheiras. “Acredito que as lutas que fazemos nos nossos movimentos e países são as mesmas, com a mesma abordagem. Queremos justiça, igualdade, queremos as nossas reivindicações e a participação das mulheres”, afirma.

Durante a conversa, Maudy falou sobre o sentido do bem viver a partir do seu território e sobre a importância de valorizar e resgatar conhecimentos e práticas ancestrais na relação com a natureza, alimentação e cuidado da saúde. Leia abaixo a tradução ou ouça no idioma original (espanhol).

O bem viver foi bastante mencionado durante nossa atividade. O que é o bem viver e suas características, segundo sua perspectiva?

Para nós, de acordo com a cosmovisão e a identidade do meu povo, o bem viver é a relação de respeito e de valor que temos com a natureza. Vemos tudo isso como sagrado, porque somos parte da terra. Viemos dela e voltamos para ela. Com base nela, temos o nosso alimento, o nosso sustento de vida.

O bem viver considera as bases da nossa Mãe Terra e compreende a justiça e a participação das mulheres. Não podemos dizer que há bem viver quando vemos nos nossos povos e nos nossos corpos uma disputa de poder, um patriarcado enraizado, um sistema capitalista e consumista que tenta nos destruir. Tentam fazer com que percamos essa conexão e essa harmonia com a Mãe Terra para nos despossuir e depois fazer com que desapareçamos e deixemos de existir para resistir.

Gostaríamos de falar sobre a importância do conhecimento das avós, cujas histórias e saberes correm o risco de se perder. Como você relaciona a importância das avós e a preservação das sementes nativas?

E quero acrescentar algo para a juventude: que possamos aproveitar esses conhecimentos das nossas diversidades e dos nossos territórios. Que nos encontremos com nossas ancestrais, nossas avós, e retomemos o que elas faziam: proteger as sementes, o corpo, a terra, porque tudo vai conectado. As sementes estão em perigo na Guatemala e na América Latina, com a privatização e essa lei Monsanto que querem nos impor. Estão nos tirando nossas sementes crioulas. As nossas avós eram muito conhecedoras e sabiam como cuidar dessas sementes, porque, se as sementes se perdem, a vida se perde e nós também nos perdemos, porque é o nosso alimento. Daí também vem o cuidado com o que consumimos, do que carregamos dentro de nós. Isso não afeta apenas os povos indígenas, mas toda a humanidade. É a partir dos povoados que a alimentação é dirigida para as zonas urbanas. Se não há semente, não há alimentação nas zonas rurais, muito menos nas zonas urbanas.

Como pessoas jovens, é bom retomar esses saberes cosmogônicos e ancestrais para mantê-los e protegê-los. Precisamos passar por uma desconstrução, pois há uma tentativa de que nós, a juventude, não nos envolvamos com esses movimentos e sabedorias. Essa é uma forma de nos desapropriar para que eles possam se apoderar de nossas sementes e territórios. Nossa defesa não se dá apenas pela luta social, mas também pela nossa alimentação. A partir daí, continuamos resistindo. Se não cuidarmos de nosso corpo, que é nosso primeiro território, teremos muito menos força para defender nossas lutas. Tudo tem um ciclo de vida: morre, nasce… A juventude tem um desafio muito grande de retomar esses saberes e mantê-los seguros para as outras gerações.

Talvez não possamos aproveitar isso, mas esperamos que as outras gerações tenham bem viver. É por isso que acho que os movimentos intergeracionais são extremamente importantes. Você precisa dessa complementaridade.

Você falou sobre o feminismo e o bem viver como elementos que se constroem a partir do território, sem separá-los. Poderia falar sobre como eles se relacionam e se encontram nas lutas?

Desde a colonização, esses sistemas se introduziram como se fossem algo muito natural, muito próprio das culturas. Infelizmente, os papéis sociais das mulheres são muito atribuídos. Nos veem apenas pelas tarefas de cuidado e pela responsabilidade com a Mãe Terra, o social, o familiar, mas isso não deveria ser assim. Não há uma harmonia entre a humanidade, entre homens e mulheres. A natureza tem harmonia, mas por que nós não? Devido a esses mesmos sistemas que nos invadiram e que chegaram para nos destruir. Então, se existir isso nas comunidades, não poderemos trabalhar em conjunto, porque os homens não vão querer considerar as opiniões das mulheres e suas participações. Isso também nos leva a nossos movimentos feministas comunitários.

Nas comunidades, vemos um campo mais duro para as lutas das mulheres feministas. No meu território, não posso me nomear como tal, como feminista, mas sei que exerço o feminismo. É uma ‘palavra bomba’, uma sentença, e dessa forma vemos que o sistema está muito enraizado. Mas agora, no meu coletivo, nossa visão é que a esperança de descolonizar e despatriarcalizar todos esses sistemas está na juventude e nas crianças.

Contribuímos para esse bem viver que imaginamos descolonizado, despatriarcalizado, não hegemônico e também sem desigualdades. A partir daí, vamos construindo. Esses movimentos contribuem para esse imaginário. Sob essa perspectiva do bem viver, tudo o que se move é energético – as plantas, nós mesmos. Então, acredito que essa foi uma conexão muito bonita. Somos de diferentes nações, mas temos o mesmo objetivo, o mesmo coração e a mesma vibração como mulheres. Acho que isso é uma força, porque nos acorpamos, o que nos ajuda muito a continuar em nossas diferentes lutas sem perder esse objetivo. É nisso que apostamos: os movimentos feministas, os encontros para nosso bem viver.

Diante da ofensiva da indústria farmacêutica, qual é a relação entre os saberes ancestrais e as plantas medicinais?

A recuperação da medicina ancestral é extremamente importante. Como me diziam minhas avós, que agora já passaram para a ancestralidade, hoje em dia a juventude já não dá importância à medicina natural. Já não temos a mesma fé nas medicinas naturais que elas mencionavam. As indústrias farmacêuticas vieram roubar o que nossas avós e avôs sabiam a partir de suas próprias cosmovisões sobre o poder de cura das plantas medicinais, e passaram a fabricar isso de outra forma. Agora temos esse hábito de comprar medicamentos que não são a nossa medicina, deixando de lado o que nos curava. É muito difícil que a juventude queira semear e cuidar dessas plantas medicinais. Precisamos retomar isso, pois era o que dava vida e saúde ao nosso povo, às nossas avós. O sistema não quer que retomemos isso.

Minha avó sempre dizia: “O que custa regar uma plantinha? O que custa ter a medicina? Não vai te custar nem um centavo, a única coisa que você tem que fazer é amá-la, falar com amor para que ela te cure”. Se temos tudo isso, temos um paraíso: temos nossa alimentação, temos nossa medicina. Mas, agora, não mais. Agora, os jovens adoecem e a primeira coisa que fazem é comprar medicamentos industrializados, mesmo quando têm ou podem ter as plantas e sua energia curativa. Nós temos isso e não aplicamos. A partir daí, surge a doença em nossos corpos, pelo que usamos e consumimos e que nos adoece.

Ontem falávamos sobre o contato com a lua, o contato com a terra, os ciclos… A natureza falava conosco. Meus avós sempre diziam que há um passarinho que canta e avisa que já vai chover ou anuncia o inverno. Então, eles preparavam a terra para a semeadura. Eles tinham um verdadeiro respeito pela natureza. Consumiam a medicina, um chá de menta, de camomila, e tinham isso ao seu alcance, não precisavam de dinheiro, pois podiam sobreviver e se curar a partir disso.

A exploração da terra e o despojo nos afetaram tanto que agora já não encontramos facilmente as plantas medicinais. Perdeu-se essa prática agroecológica, que pensava na amizade com a natureza. Agora tudo é químico, usa-se muitos agroquímicos. Não havia necessidade de fertilizantes, de colocar agroquímicos na terra. Simplesmente água, amor e cultivo eram suficientes. Algumas plantas foram exterminadas. É muito raro encontrar pessoas que tenham suas próprias hortas familiares, seus jardins botânicos. Por isso, é extremamente importante dar atenção a isso, porque se as sementes e as plantas medicinais chegarem ao fim, acredito que nós, a humanidade, também acabaremos.

Entrevista conduzida por Renata Reis, Vanessa Ordoñez e Valentina Machado
Edição por Bianca Pessoa
Tradução por Helena Zelic

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