Kanak: “reivindicamos mais ainda a nossa independência”

29/08/2024 |

Capire

Conheça as raízes e a atualidade da luta contra o domínio francês em Kanaky

G.Millant

No início do mês de maio, o povo kanak se levantou massivamente contra o domínio colonial francês. O fato que levou às atuais manifestações foi um projeto de lei que pretendia alterar a legislação eleitoral no território, reduzindo o peso da população kanak no colégio eleitoral. A violência da repressão colonial francesa foi seguida por um Estado de emergência e o projeto de lei não seguiu adiante. As mobilizações reforçaram as lutas pela independência de Kanaky. Para conhecer a história da luta por independência e os desafios atuais, Capire conversou, em maio, com três militantes da Marcha Mundial das Mulheres de Kanaky (Nova Caledônia): Oriane Trolue integra o Comitê Internacional da MMM, Françoise Callard é militante da MMM Kanaky e a terceira companheira terá sua identidade preservada neste texto.

A história de resistência do povo kanak à colonização francesa

Oriane: Para entender a insurreição do povo kanak e de seus aliados, temos que olhar para a colonização oficial da Nova Caledônia pela França. Isso ocorreu em 24 de setembro de 1853. A partir de então, o povo kanak foi submetido a várias formas de subjugação de um sistema colonial. As consequências incluíram a desorganização da própria sociedade kanak, que funcionava a partir de reinos com os diferentes clãs centralizados em uma grande chefia. A administração colonial começou a criar tribos e reservas, de modo que as fronteiras dos diferentes clãs mudaram. A primeira grande revolta kanak ocorreu em 1878, e depois novamente em 1917. Todas as vezes, o objetivo das revoltas do povo kanak era exigir reconhecimento e, acima de tudo, deixar de ser tratado como inferior.

Françoise: Quando eu era adolescente, nos anos 1969-70, houve uma revolta dos jovens kanak chamada “Lenços Vermelhos”. Eu estava diretamente presente e até mesmo envolvida nessa revolta de jovens que aspiravam a um país livre. Para mim, foi um impulso para meu espírito, não diria de mulher, mas de feminista rebelde. Naquela época, era realmente um movimento de libertação conduzido por jovens, aproveitando a onda do movimento revolucionário de maio de 68 na França. Naquele movimento também pudemos descobrir nossa própria história, porque até então a escola colonial francesa não nos ensinava a história de nosso povo, mas sim a história dos gauleses. Toda a nossa imaginação estava imersa no aprendizado da cultura francesa, que era muito diferente da nossa cultura kanak, e isso foi uma verdadeira ferida. Quando nos demos conta de que também éramos seres humanos, uma civilização com uma cultura muito rica, dissemos a nós mesmos que tínhamos de nos libertar desse domínio colonial que estava nos privando de nossa dignidade.

Oriane: Em 1984, até 88, houve o período que foi chamado de “os eventos”. É importante entender que essa foi uma revolta kanak, mais uma vez, na qual o povo kanak se organizou como um povo e politizou sua luta sob a égide da FLNKS – Front de Libération Nationale Kanak Socialiste (Frente de Libertação Nacional Kanak  Socialista). Como em outras histórias coloniais, houve uma repressão sangrenta da revolta popular. Após esses eventos, foram assinados acordos de paz entre os líderes pró-independência com a FLNKS e os líderes lealistas, prevendo um processo de descolonização que deveria levar à emancipação e à soberania total da Nova Caledônia.

Houve um acordo assinado em 1988 e, dez anos depois, o Acordo de Nouméa. O processo de descolonização previsto nesse acordo, tecnicamente, legalmente e politicamente, envolvia três consultas. A primeira consulta foi realizada em 2018, com a seguinte pergunta: “Você quer que a Nova Caledônia se torne independente, sim ou não?” Os resultados do primeiro referendo foram: 57% para o “não” e 43% para o “sim”. Em seguida, o segundo referendo – ou a consulta de saída – foi realizado em 2020. Os resultados foram 53% “Não à independência” e 47% “Sim à independência”. Portanto, podemos ver que o lado do “Sim” fez um progresso muito bom no espaço de um ano e meio.

Para a terceira consulta programada para 2021, o povo kanak pediu que a data fosse adiada, pois estávamos no meio do período da covid-19 e havíamos sofrido mais de 200 mortes kanak. O Senado Consuetudinário, que representa as tradições originárias em nível institucional, declarou luto kanak. O período de luto kanak dura um ano porque há toda uma série de ligações a serem feitas entre os clãs, os clãs paternos e os clãs maternos, para devolver o falecido à terra e devolver o que ele era, seu sangue, aos “tios uterinos”, em outras palavras, ao clã da mãe, o que é muito importante, e por isso precisamos de um ano. O Estado francês e os não-independentistas se recusaram a adiar a consulta. Portanto, o Estado francês decidiu unilateralmente impor a data do terceiro referendo. A FLNKS e os vários partidos políticos pró-independência apelaram para que a população se abstivesse. Os resultados desse último referendo foram: 56% de abstenção. Os pró-independência, então, questionaram a legitimidade desse último referendo e, no momento, estão recorrendo à Corte Internacional de Justiça para que esse terceiro referendo seja anulado.

Quando em 12 de maio de 2024 a maioria da Assembléia Nacional da França votou pelo descongelamento do corpo eleitoral, o povo kanak se organizou em uma aliança – a CCAT – de várias tendências e movimentos pró-independência, para dizer que se opunha ao descongelamento do colégio eleitoral e que estava intimamente ligado ao direito do povo kanak à autodeterminação.

Descongelar o colégio eleitoral é, de fato, uma violação do direito à autodeterminação do povo indígena.

Risco de genocídio

Oriane: Podemos ver como, apesar de todo o tempo que passou, apesar de todas as oportunidades que foram oferecidas para alcançar a descolonização, as lutas do povo kanak ao longo dos anos sempre foram pacíficas, sempre pedimos paz, sempre pedimos para viver bem juntos, até nós, os jovens de hoje. A única resposta que tivemos foram balas. Tiros. Eles atiram em nós porque levantamos nossa bandeira, porque temos orgulho de levantar as cores de Kanaky. E podemos ver que, em 40 anos, as coisas não mudaram. Todas as vezes, passamos por diferentes emoções, desde a raiva, a tristeza, até o desabamento quando vemos nossos irmãos, nossos irmãos mais novos caírem nas balas das milícias. Em todas as ocasiões, foram movimentos pacíficos que foram reprimidos com sangue. E o Estado francês nos diz que é a pátria dos direitos humanos, nos lembra disso todas as vezes e canta isso para o mundo inteiro; mas podemos ver que conosco, com o povo kanak, não é nada disso.

Companheira MMM: Quando vi o que estava acontecendo na Palestina, rapidamente estabeleci vínculos com o que estava acontecendo aqui em Kanaky, e é importante lembrar que a França nunca condenou Israel, muito pelo contrário. Por exemplo, a França enviou cerca de 2.700 soldados em um território onde somos 270.000 – e 110.000 pessoas kanak.

Precisamos estar atentas ao risco de genocídio.

Esses acordos de paz nada mais eram do que uma paz social visível. Quando se vê toda a discriminação e quando se vê o que o povo kanak está passando, não se pode falar em paz. De fato, o povo kanak não está em paz em sua própria terra. Só porque às vezes eles podem se expressar e ter esses momentos de alegria e júbilo, não significa que estejam em paz. O Estado francês é o poder administrativo aqui. Você pode ver como o declínio na França pode ser catastrófico. De qualquer forma, ela está do lado fascista, não há dúvida quanto a isso, podemos ver como ela está aliada a Israel. O estado colonial francês está atualmente em uma situação muito ruim, no sentido de que sua posição no eixo Indo-Pacífico acaba de ser seriamente questionada graças ao povo kanak.

O lugar da Kanaky nas disputas geopolíticas

Oriane: Estamos cientes e sabemos que tudo o que está sendo feito aqui é parte de um plano estratégico neoliberal do Estado francês. Houve várias visitas do Ministro das Forças Armadas, Sébastien Lecornu, que anteriormente era Ministro da França Ultramarina. Ele veio falar sobre o eixo Indo-Pacífico, com reuniões com os vários chefes de Estado do Pacífico, antes de as coisas explodirem aqui em Kanaky. Portanto, nós, como combatentes da liberdade, vimos que essa militarização maciça foi justificada pela revolta popular. Eles usaram a revolta do povo para justificar a entrada de quase 3 mil soldados no território de Kanaky.

De modo mais geral, essa militarização faz parte de um plano colonialista e neoliberal que eles chamam de “eixo Indo-Pacífico”. Isso lhes dá uma plataforma aqui, porque a Nova Caledônia tem uma situação geopolítica muito interessante.

No Pacífico Sul, os únicos territórios franceses são a Nova Caledônia, a Polinésia Francesa e Wallis e Futuna. O restante é inglês, com importantes relações com os Estados Unidos. A Ásia é nossa vizinha e estamos na região Ásia-Pacífico. Então, por trás de tudo isso, há o medo da China e, também, da Rússia. Ou seja, estamos no meio do dano colateral de todas as travessuras geopolíticas da França.

A Nova Caledônia também tem níquel, que é um recurso muito importante, classificado entre os melhores minérios do mundo. O outro depósito próximo a nós fica na Indonésia. O níquel da Nova Caledônia está passando por dificuldades no momento, principalmente com o governo francês detendo ações da SLN (Sociedade O Níquel, SLN). Enfrentamos uma grande desestabilização econômica – de fato, uma crise – relacionada ao níquel. Tudo isso está em jogo. A zona econômica exclusiva (ZEE) da Nova Caledônia abrange mais de um milhão de quilômetros quadrados. Agora, foram encontrados depósitos de gás nessa zona, mas até o momento não é possível explorá-los.

O povo kanak, por meio de várias instituições e áreas tradicionais, se opõe a isso. Há uma moratória no que é conhecido como Parque Natural do Mar de Coral. Essa é uma área nas águas da Nova Caledônia onde, por um ano ou mais, é proibido explorar. No momento, o que eles chamam de missões científicas estão em nossas águas, mas sabemos muito bem que há exploração em andamento.

O fato de o povo indígena estar exigindo independência e soberania sobre seus territórios, sobre suas terras, vai atrapalhar os planos geopolíticos e neoliberais da França, porque é preciso perceber que, em nossa cultura, em nossa civilização, as profundezas do mar são as moradas das almas de nossos ancestrais.

E não se pode perturbá-los, pois são lugares tabu. Os clãs do mar são protetores e guardiões do leito marinho, portanto, qualquer exploração vai perturbar nossos povos antigos, e nos recusamos isso.

É claro que sabemos que as empresas transnacionais estão por trás disso e, como todos os regimes neoliberais, os governos se unem e lhes oferecem força armada. Quando nós – o povo kanak e os combatentes da independência – denunciamos a recolonização dos assentamentos e uma reformulação do colonialismo, estamos denunciando o neoliberalismo.

Françoise: Nós, mulheres da Marcha Mundial das Mulheres, organizamos um seminário sobre a questão da militarização de nosso país em 2021, antes mesmo de todos esses eventos acontecerem. Tomamos essa iniciativa como feministas e os governos ficaram bastante preocupados com o fato de estarmos interessadas nessa questão da militarização.

Destaco aqui a crescente conscientização das feministas sobre a militarização; nossa preocupação se baseia nas consequências que isso pode ter para nossas famílias, nossa cultura e, é claro, para a violência contra as mulheres. 

Além disso, somos um território pequeno, com apenas 600 km de comprimento e 400 ou 300 km de largura. Portanto, com 6 mil soldados e, em breve, quase 10 mil, isso está se tornando algo muito preocupante porque as consequências ainda não foram medidas. Acho que essa será uma das nossas principais áreas de trabalho para evitar, de qualquer forma, o que pode acontecer no futuro com toda essa massa de militares chegando ao nosso pequeno território. No que diz respeito à geopolítica, certamente ninguém em nosso país está enganado hoje, estamos cientes de que os interesses da França aqui são necessariamente geopolíticos. E com isso vêm as empresas transnacionais de armamentos, a venda de armas e tudo o mais.

E antes de terminar, gostaria de prestar homenagem a um jovem de Maré, Jybril, que foi baleado nas costas pela milícia anti-kanak. Tinha 20 anos de idade e hoje (15 de maio) foi seu funeral na ilha de Maré, de onde venho. 

Entrevista conduzida por Tica Moreno
Tradução por Gaëlle Scuiller

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