Jodie Evans: “Apenas continuamos sendo as mulheres clamando por paz”

29/08/2023 |

Capire

Leia a entrevista com a cofundadora do CODEPINK sobre os desafios para acabar com a política de guerras dos EUA.

Jae C. Hong

Ações criativas que desafiam o poder no coração dos Estados Unidos e delegações de paz em países atacados pelo imperialismo estadunidense. Essas são algumas das formas de construção do CODEPINK, organização feminista que atua contra a política de guerra dos EUA. Em 2002, quando o governo do então presidente George W. Bush pavimentava o caminho para a invasão do Iraque, baseado em justificativas comprovadamente falsas, um grupo de quase cem mulheres organizou, por meses, uma vigília contra a guerra, na frente da Casa Branca. Foi desse processo que surgiu o CODEPINK. De lá para cá, ficou mais evidente para o mundo que o imperialismo estadunidense tem modos variados de fazer guerra, incluindo invasões, golpes e sanções.

Nos Estados Unidos, as mulheres do CODEPINK colocaram seus corpos em defesa da soberania popular na Venezuela, desafiaram os responsáveis pelas guerras nas ruas e em espaços do poder político, organizaram delegações para países como Cuba e Palestina para conhecer e denunciar os impactos do imperialismo na vida do povo, entre outras campanhas e atividades contra as guerras. Por isso, não é de hoje que essas mulheres são alvo de ataques originados de diferentes atores da máquina de construção de hegemonia, que usa e abusa de desinformação, perseguição e criminalização. Capire conversou com Jodie Evans, cofundadora do CODEPINK. Ecoando vozes feministas em luta para mudar o mundo, Capire manifesta solidariedade diante dos recentes ataques — carregados de misoginia — contra CODEPINK e organizações sediadas nos EUA que contribuem com a luta anti-imperialista. Leia e ouça (em inglês) a entrevista com Jodie Evans.

Você poderia começar contando sobre o processo de construção do CODEPINK como organização em defesa da paz nos EUA?

Começamos em novembro de 2002, na mesma época em que George W. Bush estava usando alertas contra o terrorismo com uma classificação por cores para convencer, por meio do medo, o povo estadunidense a apoiar uma guerra contra o Iraque.  Esses códigos de cores eram laranja, vermelho e amarelo, então decidimos chamar o nosso de código cor-de-rosa (CODEPINK), a favor da paz. Éramos apenas algumas mulheres fazendo uma vigília do lado de fora da Casa Branca todos os dias, e as pessoas começaram a vir de todos os cantos do país para se juntar a nós e dizer não à guerra. Logo as pessoas começaram a fazer vigílias em suas cidades, então, dessa primeira vigília, surgiram outras 250 em todos os Estados Unidos e ao redor do mundo.

Em certo momento, decidimos que precisávamos ir para o Iraque, porque ninguém no poder estava nos ouvindo. Então voamos para a Jordânia e dirigimos pelo deserto, chegamos à fronteira do Iraque e dissemos: “Gostaríamos de entrar”, e eles nos deixaram entrar. Ficamos lá uma semana e, durante esse tempo, conhecemos o povo do Iraque, que é um povo lindo; vimos a pobreza em que eles vivem por conta das sanções e o que essas sanções haviam feito com eles. Percebemos como era vergonhoso que alguém pudesse pensar que eles tinham meios de fazer guerra, esse país inocente com um lindo povo que não tinha como revidar numa guerra. Eles não tinham forças armadas, não tinham armas. Tivemos uma reunião com a secretaria militar, e eles nos disseram que não havia armas de destruição em massa. Fizemos um protesto do lado de fora do centro de informações na noite em que o Secretário de Estado, Colin Powel, mentiu para o mundo dizendo que havia armas de destruição em massa no Iraque.

Então voltamos e contamos às pessoas o que vimos.

Como as agendas do CODEPINK combateram o militarismo dos EUA ao longo das últimas duas décadas?

Apenas continuamos sendo as mulheres clamando por paz. Questionamos o fato de que 65% do dinheiro dos contribuintes nos EUA vão para a guerra e não para educação, saúde, moradia e para as necessidades do povo. Outro fato é que somos a nação que mais contribui para as mudanças climáticas, então, se você não coloca um fim na guerra, nada mais que você fizer importa. Por isso continuamos a pressionar. Aí, as sanções passaram a ser usadas como uma arma de guerra, por isso nos colocamos contra elas. Nós tínhamos visto os efeitos dessa prática no Iraque, vimos como a classe média do Irã estava arruinada. Sabemos o que elas causam a Cuba. Levamos milhares de pessoas a Cuba. Fomos para o Paquistão e para o Iêmen e conversamos com as famílias vítimas de drones de guerra. Os drones estavam sendo usados localmente como ferramentas políticas com o único fim de assassinar pessoas, inclusive dois cidadãos estadunidenses no Iêmen.

Então, ao longo dos últimos 12 anos, a partir do minuto que sentimos o horror de ir para a guerra contra o Iraque, quando 12 milhões de pessoas no mundo todo marcharam nas ruas para dizer não à guerra, desde então, testemunhamos o crescimento da guerra, do militarismo e da violência, e assistimos aos Estados Unidos, nosso país, saírem ilesos disso tudo de tantas formas diferentes.

Os EUA são um império que vem se impondo por meio da violência. Temos muita vergonha do nosso governo, mas, como em todos os países, o povo é belo. Nos últimos 20 anos, vimos uma verdadeira erosão da malha social nos Estados Unidos da América.

Os líderes do Congresso e o Senado são governantes autoritários. Eles não abrem espaço para o debate. É como se estivessem o tempo todo dizendo: “isso tem que ser feito do meu jeito”, “você não pode fazer isso”. Se o debate não está acontecendo nas esferas de poder, ele vai acontecer nas ruas.

A cultura está mudando, e as realidades do mundo estão mudando. Nos Estados Unidos, assim como no mundo todo, os ricos ficam cada vez mais ricos, e os pobres, cada vez mais pobres. O poder se concentra cada vez mais nas mãos de poucos, e a violência para manter o status quo só aumenta. Exemplo disso é o fato de eles estarem mantendo Julian Assange na cadeia para mostrar às pessoas que é isso o que acontece se você fala a verdade. Então o número de pessoas que estão indo às ruas contra a guerra vai diminuindo, e isso tem relação com o fato de que as autoridades não estão respondendo a nada do que fazemos. E só piora: o financiamento às guerras aumenta, a violência aumenta, há mais armas, há mais pressão sobre a OTAN para pressionar Putin, que agora está pressionando Taiwan. Quando eles começaram a querer bater de frente com a China quatro anos atrás, pensei: “Eles realmente acham que vão ganhar uma guerra nuclear?” Porque, se eles não achassem, não estariam fazendo isso.

E agora, como o povo nos EUA está reagindo com relação às guerras e ao envolvimento do país nelas?

Quando Putin avançou sobre a Ucrânia, vimos uma névoa de guerra se instalar na cabeça de todos nos EUA. De repente, todo mundo queria ir para a guerra, queria enviar armamentos. Digo, já não passamos por isso vezes suficientes? Será que eles não sabem que o poder vai à guerra só para ter mais poder? Então somos atacadas com violência por sequer pronunciarmos “diplomacia”. As pessoas dizem, “Ah, você faz apologia de Putin”.

O cérebro das pessoas entrou no modo de guerra. Elas dizem: “Temos que cuidar do povo ucraniano, precisamos enviar nossos armamentos para eles”. Mas as armas vão matar o povo ucraniano. Quem você acha que elas vão matar se a guerra está acontecendo na Ucrânia?

Outra coisa horrível que aconteceu no início da guerra foi a clara demonstração de racismo, que ficou bastante evidente para o mundo todo. Perguntei às pessoas: “Onde você estava quando os Estados Unidos bombardearam o Iêmen? 350.000 pessoas, incluindo mulheres e crianças, foram mortas pelas suas armas. E o que você diz da Somália, do Iraque, do Afeganistão e da Palestina?”

Nenhuma verdade é dita nos Estados Unidos.

Assim que a Rússia avançou sobre a Ucrânia, tentei mostrar às pessoas os custos da guerra. Porque eles estão mostrando prédios sendo bombardeados, mas não estão mostrando que as pessoas estão sendo bombardeadas; não estão mostrando o trauma que já se instalou nos corpos de pessoas ucranianas e russas. Eles não estão mostrando as mulheres refugiadas capturadas para serem escravas sexuais. Não estão mostrando a violência que já estava acontecendo antes da guerra, quando russos foram enforcados na região de Donbass. Não estão mostrando nada do que realmente expõe o custo da guerra, o custo para o planeta nem a fome na África ou a queda do PIB nos países europeus. O que eles mostram não passa de fantasia, essa noção de que não existe derramamento de sangue. Estamos tentando contar essas histórias e as pessoas ficam exaltadas. Elas ficam com raiva da gente.

O CODEPINK já foi alvo de diferentes formas de ataque por causa de suas ações nos EUA. De onde vêm esses ataques e quais são suas estratégias para enfrentá-los?

Sou alvo principalmente de pessoas que trabalham para o governo dos EUA. Elas investigam, contam muitas mentiras. Não compro briga com elas. Venho fazendo isso há 50 anos, as pessoas sabem quem eu sou.

Nós do CODEPINK falamos abertamente sobre o que pode parecer seguro para a maioria das pessoas. E sempre acertamos. Mas, no começo, estávamos sozinhas. Quando fomos até a embaixada venezuelana para protegê-la, as pessoas não queriam ficar por perto. Elas tinham medo de serem presas.

Costumo observar a mídia mainstream para tentar entender como a propaganda política está agindo. Pesquisas nos anos 1980 mostravam que 95 por cento das informações nos EUA sobre a Rússia eram negativas e que 95 por cento das informações na Rússia sobre os EUA eram negativas. Era tudo propaganda de ambos os governos, mas os russos sabiam que era propaganda, enquanto que o povo nos EUA não. Isso se assemelha às noções malucas que as pessoas têm sobre a China.

Temos visto uma mudança na ordem mundial e uma tensão crescente contra a China por parte dos EUA. Quais estratégias vocês estão construindo nos EUA, considerando a perspectiva que você compartilhou agora há pouco sobre o Irã, de que precisamos parar as guerras antes que elas comecem?

Impedir as guerras antes que elas comecem também é filosofia chinesa. Vemos isso acontecer com o Iraque, com o Afeganistão e agora com a Ucrânia. Paramos os bombardeios no Irã, mas não paramos a guerra no Irã. A guerra está se desenrolando lá com violência, e as pessoas estão sofrendo muito. Às vezes penso que as sanções como ferramentas de guerra podem ser, de formas muito estranhas, piores do que a guerra em si, porque elas são silenciosas. É como um assédio moral, que algumas vezes pode ser muito mais prejudicial do que a violência física, porque, no caso da violência física, pelo menos você sabe que levou um golpe. O assédio moral bagunça com o seu cérebro. As sanções estão acontecendo, mas ninguém se importa, ninguém vai fazer nada por você. Mas você está sofrendo abusos.

As sanções matam.

As sanções são armas violentas, e o fato de que os Estados Unidos têm se evadido da responsabilidade é um crime contra a humanidade. O mundo mudou nos últimos 20 anos. Menos pessoas estão lutando para parar as guerras e se colocando realmente a favor da paz. Globalmente, mais pessoas de fato reconhecem a existência do império estadunidense, sua violência e sua hegemonia. Elas veem, apontam e não querem fazer nada.

Eu me dei conta de que as guerras não vão acabar porque elas servem à economia.

Para mim, o capitalismo é a economia da guerra e o socialismo é a economia da paz.

A economia da guerra é a economia extrativista, destrutiva e opressiva que está matando nossas comunidades e o planeta. Todos dão suas vidas por essa economia da guerra. Mas existe uma economia da paz que sempre esteve aqui. É a economia do compartilhamento, do cuidado, das relações e da resiliência; sem isso, nenhum de nós estaria vivo. Mas, todo ano, esses aspectos da vida são espremidos até a morte, privatizados e desvalorizados.

Como ativista da paz, preciso trabalhar onde estou. As pessoas dizem que é muito mais fácil enxergar quando você está do lado de fora. Se você percebe que alguma coisa está errada, saia da economia da guerra e comece a cultivar uma economia da paz.

Uma das formas de fazer isso é construindo um movimento global. Realmente unir-se às pessoas da sua comunidade e do mundo todo, pensar localmente e agir globalmente. Aquilo que o meu governo faz afeta o mundo todo, então sou responsável por isso e é por esse motivo que lanço meu corpo nessa luta.

Vamos continuar desestabilizando as estruturas da guerra. Todo dia, levantamos cartazes que dizem algo diferente. “A China não é nossa inimiga”, “Dinheiro para os pobres, não para a guerra”. Apresentamos outras opções. Não fingimos que vamos parar aqueles que fomentam a guerra porque sabemos que eles estão ganhando rios de dinheiro com isso. O que vai fazer eles pararem são as pessoas do mundo unidas dizendo “Chega! Não queremos mais isso”. Não são os ativistas nas ruas dos Estados Unidos que vão parar as guerras, mas precisamos ir lá desempenhar nosso papel, tirar a nós mesmas da economia da guerra, para que assim sejamos ferramentas úteis para o futuro.

Você foi uma das organizadoras da campanha “A China não é nossa inimiga”. Como isso está se desdobrando nos EUA?

Primeiro, comecei a pensar: “Isso está parecendo o Iraque, tudo de novo”. Os EUA querem entrar em guerra com a China. O país está fazendo pressão para começar uma guerra, e já houve mortes. As vítimas foram ásio-americanos, e a violência foi resultado do aumento da xenofobia e do ódio contra os asiáticos nos Estados Unidos. Houve assassinatos e também casos de idosos espancados. Digo ódio contra os asiáticos, não ódio contra a China, porque, nos EUA, ninguém sabe diferenciar os países asiáticos.

No começo, em todo lugar a que eu ia, ouvia: “Você é membro do partido, está sendo financiada pelo governo chinês”. Todo esse tipo de propaganda política. Eu só ouço tudo isso e deixo os ânimos se acalmarem, porque essas frases não têm fundamento, e então as pessoas se sentem mais seguras. Mostro para elas o mapa das 250 bases ao redor da China e os abusos que os Estados Unidos estão cometendo exatamente agora em todas as ilhas ao redor da China, onde eles estão construindo bases para mísseis e destruindo o ecossistema.

Existe um comitê chamado comitê de concorrência com a China. Invadimos a primeira reunião do comitê dizendo: “A China não é nossa inimiga”. Nosso ato foi muito bem recebido e meu objetivo era que o Washington Post e o New York Times imprimissem as palavras “A China não é nossa inimiga”, e foi isso que eles fizeram. Agora eles estão usando a frase nos editoriais, e as pessoas estão tendo mais coragem de falar sobre o assunto. Há mais pessoas relacionadas à China que são inteligentes o suficiente para entender que elas não querem que Taiwan vire uma Ucrânia. É preciso criar espaço, é preciso chegar às bordas do conflito e fazê-las recuar antes que a guerra comece, só que, obviamente, a guerra já começou.

Entrevista e edição por Tica Moreno
Tradução do inglês por Rosana Felício dos Santos

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