Ecofeminismo materialista: uma entrevista com Ariel Salleh

14/04/2023 |

Capire

O ecofeminismo materialista é uma convergência da resposta feminista, decolonial e socialista diante do colapso ecológico do século XXI.

Ariel Salleh se tornou ecofeminista nas lutas contra a mineração de urânio em terras indígenas na Austrália, na década de 1970. De lá para cá, se tornou referência na construção do ecofeminismo materialista, em diálogo com outras lutadoras e teóricas de diferentes partes do mundo. A relação entre pensamento e movimento é explícita em suas elaborações, e marca sua posição nos debates teóricos e políticos do ecofeminismo.

Da visão teórica sobre o capitalismo-colonial-patriarcal às atuais ofensivas desse sistema sobre a vida no planeta, como a financeirização da natureza, e às alternativas em construção; das elaborações precursoras do ecofeminismo aos desdobramentos contemporâneos do movimento, passando pelos embates e disputas com as visões eurocêntricas que operam dicotomias patriarcais e com o academicismo que dissocia conceitos das experiências reais das lutas pelas condições de reprodução. Esses foram alguns dos temas abordados por Ariel Salleh nessa entrevista para Capire. Você pode ouvir o áudio da entrevista em inglês.

Para começar, como você vê o ecofeminismo hoje?

Bom, como você está na China, gostaria de começar dizendo que existe uma rede impressionante de mulheres que participam da Universidade Global pela Sustentabilidade [Global University for Sustainability], em Hong Kong e na Universidade de Chongqing, na China Continental. Elas vêm trabalhando ativamente em conjunto com as mulheres das vilas locais para incentivar a preservação dos métodos da agricultura tradicional. Essas mulheres produzem seu próprio alimento sem agrotóxicos e os comercializam diretamente para a população local. Essa é uma economia alternativa não capitalista. Há também na China um interesse acadêmico cada vez maior no feminismo ecológico e nas tecnologias tradicionais das mulheres. Feminismo ecológico é basicamente a mesma coisa que “feminismo comunitário”, que é como vocês chamam na América do Sul, ou o termo popular mais antigo “feminismo radical”. Esses feminismos têm origem nas lutas diárias das mulheres para atender às necessidades da vida e proteger “as condições de reprodução” – parodiando a frase socialista.

As escritoras ecofeministas materialistas com quem estive envolvida – Maria Mies, Vandana Shiva, Mary Mellor, Ana Isla — já eram transculturais e decoloniais desde o começo. E isso é um contraste com os feminismos acadêmicos, que se alimentam do que está nos livros e passam muito tempo criticando conceitos filosóficos que não têm muito a ver com o dia a dia da vida. O ecofeminismo materialista está tomando cada vez mais forma por conta da crise climática e das diversas crises sociais que atingem o mundo hoje. Vejo elementos do ecofeminismo, embora não com esse nome, entre a juventude envolvida no movimento Extinção ou Rebelião [Extinction Rebellion] e definitivamente no Juventude pelo Clima [Fridays for Future], na Europa. Tem havido uma convergência maravilhosa de energias ecofeministas entre as mulheres na Austrália também, como as mulheres da Knitting Nanna, que lutam para salvar a bacia do Rio Murray-Darling. Um grupo de mulheres idosas no Japão se levantou contra uma nova base militar, dando ênfase à experiência delas como cuidadoras. Não podemos esquecer a WoMin na África: uma rede popular que abrange todo o continente e é formada por mulheres que se opõem aos empreendimentos mineradores e que se preocupam com as mudanças climáticas. Elas escreveram seu próprio manifesto ecofeminista.

Todos esses exemplos estão inseridos em situações concretas, lidando com questões econômicas, enfrentando o sistema em que vivemos, opondo-se ao modelo de desenvolvimento e à militarização, como é o caso desse exemplo do Japão.

As mulheres japonesas têm sido incríveis. Lembro que, décadas atrás, quando aconteceu o desastre nuclear de Fukushima, foram elas que tomaram a dianteira, atuando de forma consistente como líderes do movimento antinuclear. Eu mesma, na verdade, comecei no ecofeminismo em meio ao movimento antinuclear na Austrália, em 1976, quando criamos o Movimento Contra a Mineração de Urânio em terras indígenas.

Abrindo parênteses aqui, quando olhamos para a história de cinco décadas do feminismo ecológico, vemos que houve um período em que as feministas acadêmicas atacavam as feministas radicais afirmando que elas eram “essencialistas”. Mas um raciocínio que considera essencialista a política das mulheres em torno do cuidado está seguindo rótulos dados pelo patriarcado, como “feminilidade” etc.

As ecofeministas materialistas falam sobre condições de vida econômicas-biológicas-biofísicas fundamentais.

Talvez esses debates iniciais em torno do ecofeminismo tenham origem na dominância da academia estadunidense, já que o socialismo não é muito bem compreendido lá. Qualquer denominador comum entre pessoas trabalhadoras, mulheres, indígenas e política ecológica precisa ser uma política materialista.

Você participou do Encontro Internacional da Marcha Mundial das Mulheres no Brasil, em 2013. Aquele foi um momento-chave para nossa elaboração política sobre o reforço da ofensiva do capital contra a vida e a natureza, contra nossos corpos, e sobre a violência e a militarização. Dez anos depois, como você analisa as atuais estratégias capitalistas e o papel do desenvolvimento tecnológico nisso?

Nos últimos anos, o capitalismo intensificou sua penetração em todos os aspectos da vida, o que se percebe, por exemplo, pela proeminência de grandes bancos ou pela tendência da digitalização. Os bancos estão comprando enormes extensões de terra em todo o mundo para uso em tecnologias agrícolas experimentais, como sementes híbridas geneticamente modificadas. Mas a terra para produção de alimentos é a base de subsistência dos povos. E claro, se você olhar por baixo do capitalismo, vai encontrar o patriarcado. No sistema patriarcal-colonial-capitalista, a forma originária e mais antiga de poder é a dominação exercida pelos homens sobre as mulheres. Aí vem a colonização invadindo a terra e tomando os recursos de outros povos. Finalmente, o formato econômico do capitalismo emerge da colonização e é relativamente moderno, tendo apenas algumas centenas de anos de vida. É importante perceber que esses três sistemas são concomitantes, eles se entrecruzam e um reforça o outro. O capitalismo em si não funcionaria sem as energias patriarcais que o impulsionam. Essas energias são aprendidas e incorporadas pelos homens e se expressam nas práticas sociais e econômicas. Cada um desses três níveis tem suas várias camadas: indo do inconsciente às ações diárias, às estruturas políticas e às ideologias.

Nossas companheiras indígenas da América Latina organizam a resistência mobilizando a noção de corpo-território. É uma forma antipatriarcal, anticapitalista e decolonial de entender e organizar a vida e nossa interdependência com a natureza. Qual é a sua visão sobre essa noção a partir do seu contexto e do seu pensamento?

Eu não conhecia esse termo até você me falar sobre ele, então pesquisei e simplesmente amei. Ele se relaciona com a tese ecofeminista original dos anos 1980, que percebeu que a ideologia do patriarcado exerce seu domínio tanto sobre as Mulheres quanto sobre a Natureza, e insistia que somos “mais próximas da natureza” do que os homens.  Esse dualismo rígido ainda é uma premissa basilar do pensando do século XXI, chegando até a configurar conceitos jurídicos e econômicos. No meio acadêmico, convencionou-se separar as Humanidades das Ciências. A esse dualismo e a outros que vêm junto com ele chamo de imaginário 1/0 – Homem/Mulher, Branco/Negro, Economia/Ecologia, Valor/Não Valor – veja o livro Ecofeminismo como Política (Ecofeminism as Politics) (1997/2017). Precisamos educar nossas comunidades para que elas deixem para trás essa realidade dividida – a dissociação fundamental que colocou o patriarcado eurocêntrico em movimento.

Todos os seres humanos, incluindo os homens, são “natureza corporificada”.

A natureza perpassa nossos corpos, que, ao morrerem, recomeçam o ciclo fertilizando a Terra. Então, sim, foi uma alegria conhecer o sentido relacional das mulheres latinoamericanas de “corpo-território”.

A economia verde vem sendo normalizada como a solução para as mudanças climáticas, para a crise climática e assim por diante. Quando os instrumentos da economia verde chegam especialmente nas áreas rurais, onde vivem as mulheres indígenas e, no Brasil, também as mulheres quilombolas, é muito difícil confrontá-las. Sentimos que não existe crítica suficiente a respeito desses tipos de mecanismos, mesmo em parte da esquerda. Sua elaboração sobre a dívida ecológica pode nos ajudar a lidar com esse processo de financeirização da natureza e com os instrumentos da economia verde.

Quando a ideia da Economia Verde nasceu lá no início dos anos 2000, pensamos que seria uma solução, mas o capital logo se encarregou de transformar essa ideia numa ideologia reformista. E aí veio o Novo Acordo Verde (Green New Deal). O problema é que essas propostas se baseiam em aspectos econômicos, e a economia faz parte da dissociação do sistema patriarcal de crenças, que se baseia em dividir a natureza em unidades mensuráveis. A natureza não pode ser reduzida a uma métrica, ela opera por meio de ciclos de energia entre as formas de vida.

No livro Suficiência Ecológica e Justiça Global (Eco-Sufficiency & Global Justice) (2009), quando usei o termo “dívida corporificada”, tinha em mente uma noção alternativa de dívida, não estritamente econômica, mas uma que se relacionasse ao “valor metabólico” da natureza que gera a vida. É verdade que, no capitalismo global, os trabalhadores não são adequadamente pagos em dinheiro pelo tempo trabalhado, mas as mulheres não são pagas de forma alguma pelas longas horas de trabalho doméstico reprodutivo a que elas se dedicam. Além disso, seus corpos são exauridos no processo de gerar vida e dar à luz, uma contribuição termodinâmica e material maciça à sociedade. De modo semelhante, os povos indígenas colonizados nunca foram compensados pelo roubo de seus meios de subsistência, nem pelo “trabalho meta-industrial” que eles realizam ao prover e ao mesmo tempo proteger a infraestrutura natural da qual o capitalismo depende para funcionar. Há ainda uma dívida geracional, já que o capitalismo delega a resolução de seus problemas, como as mudanças climáticas, às gerações futuras. O “mundo da vida” das espécies não humanas também é prejudicado pelo modelo de desenvolvimento eurocêntrico. Chamo isso de “a matriz de dívidas”.

Você acha que hoje mais pessoas estão reconhecendo que a produção de capital depende da reprodução?

Não de forma significativa: a “reprodução” é invisível para a mentalidade patriarcal por causa da separação sistemática entre humanidade e natureza. Mesmo marxistas e ecossocialistas têm dificuldade em reconhecer isso. Durante a pandemia da Covid, o papel essencial do trabalho de cuidado ficou evidente para todos – talvez tenha ocorrido alguma pequena mudança de consciência. Mas na Austrália, com o rápido aumento do custo de vida, enfermeiras e professoras estão deixando seus empregos em massa por conta dos baixos salários e condições precárias.

De um lado, temos muito material de análise diagnóstica sobre como o capitalismo-colonial-patriarcal funciona e, de outro, temos o desafio de promover visões e práticas alternativas de como organizar a sociedade. Então, como podemos avançar e articular a análise com a mudança de perspectivas e colocando a reprodução social da vida no centro da organização da sociedade?

O ecofeminismo materialista é uma convergência da resposta feminista, decolonial e socialista diante do colapso ecológico do século XXI.

Estamos em busca de um Pluriverso, ou como diz o movimento zapatista, um mundo em que muitas culturas autônomas coexistam em harmonia. Já mencionei a agricultura comunitária das mulheres chinesas, e há movimentos semelhantes de Rojava ao Equador. O Pluriverso delineia uma diversidade de modelos para formas sustentáveis de viver – e a contracapa desse livro traz um convite para as pessoas agirem e se somarem à Colcha de Retalhos Global de Alternativas [Global Tapestry of Alternatives], coordenada por Ashish Kothari e colegas na Índia. Coisas boas estão acontecendo, só que o sistema-mundo capitalista-patriarcal-colonial é tão agressivo e tão barulhento que não vai ser nada fácil para nós!

Entrevista conduzida por Tica Moreno
Tradução do inglês por Rosana Felício dos Santos
Revisão da tradução por Tica Moreno
Original em inglês

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