Desafios do feminismo em Angola

18/07/2022 |

Bianca Pessoa

Como as mulheres feministas se organizam na luta por seus direitos e contra a violência politica

“Na história contemporânea pós-colonial de África, Angola é conhecida como o local de um dos conflitos mais traiçoeiros que assolaram o continente.”, conta Sizaltina Cutaia. O país que conquistou a independência de Portugal em 1975 viveu 27 anos de guerra civil entre o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA), e a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA). A vitória do MPLA em 1991 encerrou a guerra no país e, desde então, esse mesmo partido se mantém do poder.

Conversamos com Sizaltina Cutaia e Maria Luiza, também conhecida como Tchengita, militantes da Ondjango Feminista. Ondjango Feminista é uma organização criada em 2016, que se orienta pela Carta de princípios feministas para as feministas africanas. Um feminismo situado nas questões particulares do contexto africano. Na entrevista, elas nos contaram como se dá a organização das mulheres na luta por seus direitos no contexto político de Angola, quais desafios as mulheres enfrentam para se organizar em uma agenda feminista e compartilharam suas impressões e perspectivas sobre as próximas eleições que acontecem em 24 de agosto.

Desde a independência de Angola, em 1975, o país é governado pelo mesmo partido e durante muito tempo foi inclusive governado pela mesma pessoa, o ex-presidente José Eduardo dos Santos, no poder de 1979 a 2017. Como essa falta de alternância e como a articulação desse partido para se manter sempre no poder afeta a vida prática das pessoas angolanas, especialmente das mulheres?

Siza: Teremos eleições em 24 de agosto desse ano, e na semana passada o Presidente da República foi na qualidade de candidato à presidência visitar a província do Bengo. Os professores da escola pública receberam orientações para não faltar à visita. Quem faltasse poderia sofrer descontos e outras consequências. Estamos em 2022, faz 22 anos que acabou a guerra e 30 anos desde nossa primeira eleição multipartidária. Mesmo assim o MPLA continua com poder hegemônico, estruturando quase todas as relações na sociedade. As pessoas ainda hoje têm medo de dizer que têm simpatia por outro partido político, pois esse é um partido que conseguiu seu poder à custa de violência. A violência foi muito forte para impedir que as pessoas realmente pudessem se organizar e mobilizar. Inclusive com serviços secretos de vigilância espalhados por todas as estruturas, limitando o exercício pleno da cidadania dos angolanos.

Se tem eleições e as pessoas podem decidir, como o mesmo partido continua no poder? Como se dá o processo eleitoral?

Tchenguita: As pessoas têm medo de represálias. Nós estamos a vir de 27 anos de guerra civil somados as outras violências de 75 para cá, como os casos de 27 de Maio1 e a Sexta-feira Sangrenta2. Todos esses eventos violentos fizeram com que houvesse um medo coletivo. Nós temos uma frase que diz “Xé, menino! Não fala política” e todos nós crescemos a volta disso. Esse medo muitas vezes faz com que as pessoas votem nesse partido. Mas também tem outro aspecto de que o partido utiliza de todo tipo de arbitrariedade e ilegalidade para se manter. Então fraudes eleitorais são comuns nesse país.

Eu faço uma correlação entre o partido em situação e o próprio colonialismo. Eles adaptaram certas ferramentas colonialistas para nós. Por exemplo, o caso de as pessoas não poderem exercer cargos públicos se não forem do MPLA me faz lembrar os cidadãos de segunda e primeira classe da época colonial. Se você não deixasse os teus hábitos culturais africanos étnicos e não se assimilasse, você não sobressaía na vida. Os colonizadores impunham impostos que as pessoas não iam conseguir pagar, pois não tinham acesso aos trabalhos. Isso as obrigava a se tornarem assimiladas com a cultura imposta. Isso é uma coisa que eles transportaram para sua política.

Mesmo nesse contexto político conturbado e de muitas opressões, as mulheres se articulam em organizações feministas e lutam por suas reivindicações. Gostaríamos de entender um pouco da história e do contexto atual da luta de mulheres. Houve avanços nos últimos anos?

Siza: Houve alguns avanços principalmente no âmbito normativo. Um regime totalitário precisa fazer algumas concessões para se manter no poder, fazer reformas de maquiagem. Conseguimos aprovar determinadas leis conforme os padrões internacionais. Por exemplo, nós temos uma lei de violência doméstica, mas que tem muitas limitações para ativamente dar resposta ao problema da violência contra mulher. Temos uma política nacional para igualdade de gênero com representação das mulheres no parlamento. Nas eleições deste ano, o MPLA vem com uma lista que apresenta 51% de mulheres como candidatas. Esse é um governo composto por várias mulheres e em posições muito importantes, mas do ponto de vista prático, de melhorar as condições sociais das mulheres, nós ainda temos muito trabalho para fazer.

Falta investimento adequado no setor da saúde. Quase todos os meses temos a inauguração de uma estrutura de saúde pública com investimento milionário, mas que depois não funciona. O hospital inaugurado há seis meses em Luanda precisou ser evacuado porque tem risco de incêndio. Esses investimentos não são de qualidade e não são feitos para realmente melhorar a qualidade da vida das pessoas. As mulheres continuam a ser prejudicadas pela falta de água potável. Se não há água potável, quem vai deixar de trabalhar para carregar água para família? As mulheres. Dentre outras questões, temos problemas muito sérios em Angola de violência obstétrica, de falta de medicamentos e violência sexual contra meninas e mulheres.

Os avanços que existem são poucos, mas a luta continua. Eu sou um pouco mais velha, mas essas miúdas, essas jovens com essa energia nos dão esperança de que em algum momento as coisas talvez mudem. Muitas mulheres jovens assumidamente feministas estão disputando a política com uma posição muito mais crítica sobre a situação. O fato delas estarem a entrar nesse espaço que ainda é muito dominado pelas agendas dos partidos, esses liderados por homens, são brechas que se abrem. Nós esperamos que possam servir de espaço para produzir algumas transformações

Nesse caso, como se dá a luta da Ondjango e das organizações feministas por esses direitos não garantidos pelo governo atual? Quais desafios enfrentados?

Tchenguita: As organizações de mulheres aqui são essencialmente organizações da sociedade civil que apontam para aspectos urgentes como saúde sexual e reprodutiva das mulheres, voltada para doenças sexualmente transmissíveis como HIV e SIDA, e violência doméstica. Mas elas não apontam em aspectos fulcrais e nem pegam as motivações desses mesmos problemas. O Ondjango nasceu numa época em que se discutia digitalmente sobre feminismo, entre os anos de 2015 e 2016. Enquanto em outros países se avançava essa discussão, nós estávamos a começar a discussão feminista. Até hoje o termo feminista é um termo demonizado e mal visto.

O feminismo não é aceito também porque dizem que ele é importado. “É um conceito ocidentalizado, não tem que ver com a cultura africana”. Esse é um argumento que todas as feministas africanas têm que lidar. O Ondjango precisou conquistar seu espaço em meio a depreciação da imagem das mulheres que faziam parte da organização. Mas nós conseguimos demonstrar que esse é um espaço de militância política e conseguimos também conquistar mulheres, que era nosso objetivo.

Siza: Nós propomos sempre trazer e discutir os assuntos a partir de alguma evidência. Nós produzimos nossos informes com informações a partir de uma realidade posta para as mulheres. Quando começamos a discutir, por exemplo, a questão do aborto, nós fomos atrás de informação. Fizemos alguns inquéritos na internet para as pessoas dizerem coisas e fomos falar com responsáveis das maternidades públicas para nos darem estatísticas. Uma das frases para defender a criminalização do aborto era de que se descriminalizado, as miúdas iam usar o aborto como método contraceptivo. Nós tínhamos dados que nos indicavam que a maioria das mulheres que apareciam nos hospitais públicos para tratamento em resposta a um aborto mal feito eram mulheres entre 26 e 38 anos, que eram casadas e já tinham filhos. Promovemos debates, produzimos artigos de opinião, produzimos informações e elaboramos uma carta documentada para assembleia nacional. Nessa carta explicávamos por que o aborto é uma questão de saúde pública, que tinha que ser visto como uma questão de justiça social. Chegamos na reunião da Assembleia para qual nem fomos convidadas como as únicas que tinham um documento escrito e fomos as primeiras a falar, então ditamos o tom da conversa.

Em 2017 um novo presidente foi ao poder, mas ainda do mesmo partido, não significando muitas mudanças. No entanto, desde 2017, o mundo passou por várias mudanças significativas, incluindo uma pandemia global e o aumento da exploração do sul global pelo norte. Como se dá a situação das mulheres angolanas agora e qual é a participação do movimento feminista neste momento no país?

Siza: Nós somos um país cuja economia é muito marcada pela informalidade que tem como base as mulheres. São as mulheres que estão nas praças e realizando o trabalho doméstico. A pandemia afetou as mulheres de uma forma muito direta. Houve discussões sobre como a violência contra mulher aumentou pela pandemia. Os pouquíssimos centros de acolhimento de mulheres vítimas de violência foram fechados nos períodos de isolamento. Nesse período ainda tivemos seca em Angola que afetou gravemente as populações do sudeste e sul do país. Diante disso, entendemos que o nosso ministério da Assistência Social precisa muito ser reforçado por pessoas com entendimento das desigualdades estruturais para elas poderem pensar políticas que respondam às necessidades específicas das mulheres.

Há neste momento um projeto elaborado pela Associação de Assistentes Sociais de Angola de avaliação das políticas sociais que existem no país e nós temos uma companheira do Ondjango com esse grupo. Estamos tentando colocar uma perspectiva de gênero nessa avaliação para podermos fazer sugestões e recomendações de melhoras nas políticas públicas.

E com essas eleições de agosto, quais as perspectivas para o futuro?

Tchenguita: Nossa tensão está na violência e nas fraudes que conhecemos por terem sido usadas no passado e podem ser utilizadas novamente. Mas se formos pela via legal, pela transparência, a esperança de ter uma mudança é grandíssima. Dessa vez houve uma mudança enorme, principalmente em todos estarem juntos para tirar um único poder. O problema é que esse poder não é passivo, e temos receio.

Siza: Eu acho que tem esperança. Essas serão as eleições mais disputadas da história deste país. Porque hoje, em 2022, pela primeira vez, a possibilidade do MPLA perder as eleições é real. As promessas do atual presidente não foram cumpridas, a oposição tem um candidato forte e carismático e há saturação do sistema. A oposição fez uma coisa que durante anos a sociedade civil pediu para fazerem, formar alianças. Os partidos políticos conseguiram se juntar e fazer uma frente única, a Frente Patriótica Unida. Temos a presença de jovens nessa lista, a presença de pessoas que não são militantes de partidos políticos, pessoas que não seguem a lógica concebida em Angola de partido. Uma lógica de que não se pode criticar o líder ou divergir do sistema. Isso é algo para celebrarmos. Eu me recuso a me desesperançar, pois isso seria abrir mão desse país que também nos pertence. E eu acredito piamente que são as mulheres que vão mudar este país. As mulheres que se articulam ao nível comunitário, as mulheres de Ondjango, as das igrejas, essas se articulam e vão mudar o país.

Entrevista conduzida por Bianca Pessoa

Revisão por Tica Moreno

1 No dia 27 de maio de 1977, um racha entre apoiadores de dois candidatos diferentes do partido MPLA protagonizaram uma perseguição interna que resultou em dezenas de milhares de angolanos torturados, mandados para campos de concentração e fuzilados sem julgamento.

2 Sexta-feira Sangrenta, em Angola, simboliza os massacres perpetrados contra angolanos do grupo etnolinguístico Kikongo em 23 de Janeiro de 1993.

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