Daya Laxmi: “Acordos de livre comércio afetam e vitimizam grupos camponeses”

18/12/2023 |

Entrevista conduzida por Natália Lobo

Interpretação consecutiva do nepalês para o inglês por Madhab Pant

Militante da MMM no Nepal fala dos impactos dos ALC na região do sul da Ásia

Foto: La Via Campesina 2023

Mulheres do mundo todo organizam a luta contra o capitalismo e o neoliberalismo. Na região do sul da Ásia, essas forças, na forma de acordos de livre comércio (ALC), desempenham um grande papel no empobrecimento de pessoas camponesas e mulheres nas zonas rurais e urbanas. Entre as principais pautas dos movimentos populares do Nepal estão as lutas para que a Constituição sirva, de fato, como base para a garantia de direitos básicos para todas as cidadãs e todos os cidadãos, incluindo soberania alimentar e participação das mulheres na política. O país passou por uma imensa mobilização que culminou, em 2006, na abolição da monarquia e na implementação de um governo republicano. Desde a revolução de 2006, duas Constituições foram elaboradas: a Constituição provisória de 2007 e a atual Constituição em vigor no Nepal, de 2015.

Capire conversou com Daya Laxmi, uma das integrantes do Comitê Internacional da Marcha Mundial das Mulheres que representa a região Ásia-Pacífico. A entrada de Daya no comitê foi aprovada durante o 13.o Encontro Internacional da MMM, realizado em outubro em Ancara, na Turquia, atual sede do Secretariado Internacional da MMM. Ao lado de Daya, a região é representada por Hadinah Soka, da Indonésia, e Oriane Cingone e Marie-Helene Trolue, da Nova Caledônia. Em seu país, Daya também é tesoureira da Federação de Camponeses de Todo o Nepal (All Nepal Peasants’ Federation—ANPFa, Nepal), organização que integra a Via Campesina.

Na entrevista, Daya falou sobre os impactos dos ALC em seu país, a luta camponesa e a luta para tornar a soberania alimentar um direito fundamental, além de contar sobre como as mulheres se organizam para combater o patriarcado que está entranhado nas tradições. Esta entrevista foi conduzida durante a 8.a Conferência da Via Campesina, realizada em dezembro de 2023 em Bogotá, na Colômbia. Mais de 400 delegadas e delegados do movimento e de organizações aliadas se reuniram durante a conferência para construir a luta, com o lema “Diante das crises globais, construímos soberania alimentar para garantir um futuro para a humanidade!”.

Quais os efeitos dos acordos de livre comércio hoje no Nepal e na região da Ásia? Existe algum acordo de livre comércio ativo?

Os acordos de livre comércio trazem muitos desafios para a região da Ásia. No Nepal, eles destroem a economia rural ao criar uma situação de dependência econômica. Na Ásia, esses acordos aparecem de diferentes formas, como nos Acordos Bilaterais de Proteção e Promoção de Investimentos (ABPPIs), acordos bilaterais e multilaterais entre o leste e o sul da Ásia. Nos países do sul da Ásia, existe o Acordo Comercial Ásia-Pacífico (ACAP), e por causa desses acordos, países como Sri Lanka, que era o mais rico da região, agora estão falidos, pobres e enfrentando uma imensa crise econômica. Existe também o ABPPI entre Nepal e Índia, que traz crise para a economia do Nepal. E também a Parceria Econômica Regional Abrangente (PERA), acordo de livre comércio entre países do sul da Ásia e Austrália, China, Indonésia, Japão e Coreia do Sul, que afetou profundamente a região.

Esse grande número de acordos de livre comércio profundamente arraigados na região afetou e vitimizou grupos de pequenos e médios camponeses. Pessoas sem-terra e pequenos camponeses estão produzindo alimentos e todo tipo de produto, mas não têm mercado. Os mercados e até os meios de produção deles estão sendo capturados pelos poderes capitalistas neoliberais. Esses pequenos camponeses não têm a propriedade da terra e estão perdendo as poucas terras que têm, o que os empobrece. Podemos falar sobre diversos efeitos disso na vida dessas pessoas, como a crise econômica e a ausência de mercado para os bens produzidos por elas. Isso leva a fome, a conflitos, à exploração do trabalho, à disparidade e à discriminação, enquanto as pessoas camponesas são privadas de direitos. Os impactos desses ALC que operam na região podem ser vistos na crise climática e econômica que estamos vivendo. Eles violam os direitos humanos. Os pequenos camponeses, os camponeses reais, estão ficando cada vez mais sem terra.

Quais as consequências efetivas, para as mulheres camponesas, da inclusão da soberania alimentar na construção do movimento no Nepal? Quais são os desafios?

O movimento agrário e camponês do Nepal surgiu há 70 anos. Em 2015, promulgamos uma nova Constituição, porque temos pessoas na luta desde 2006. Essa nova Constituição garante que a soberania alimentar é um direito fundamental do nosso povo. Agora estamos promulgando uma Lei da Agricultura, que já foi aprovada, mas não implementada. As pessoas camponesas têm direitos obrigatórios segundo nossa Constituição, mas essa lei apresenta a forma como esses direitos serão implementados. Essa lei foi elaborada e construída pelo Parlamento para as e os camponeses, e indica o que elas e eles devem fazer e quais são seus direitos. O que implementaremos: isso é pela lei. A participação das mulheres nas negociações para a construção da lei foi forte. Nós participamos na discussão de todos os aspectos dela em relação à agricultura junto ao ministério, no nível federal, no nível das províncias, e até nos órgãos locais. No Nepal, em todos os níveis do governo, a representação das mulheres é obrigatória. Além disso, também sempre deve haver representação indígena.

Existem alguns desafios. A Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Camponeses e das Camponesas e de Outras Pessoas que Trabalham em Zonas Rurais (UNDROP) não foi totalmente implementada, então tentamos criar novas leis e dispositivos legais para sua implementação. A declaração garante direitos e propriedades para pessoas camponesas. Mas é muito difícil transformar o setor agrícola por causa da intervenção internacional ou estrangeira sobre as questões nacionais. Esses diversos poderes estrangeiros, potências imperialistas e capitalistas, estão tentando forçar programas de bancos de terras e investimento estrangeiro direto. Esses programas estão tentando, por exemplo, implementar oleodutos no país, mas a organização camponesa está lutando contra isso, e até o momento eles não foram implementados.

O poder estrangeiro está tentando atrair todo tipo de intervenção, mas a soberania alimentar é nosso direito, então elaboramos uma nova Constituição que está sendo implementada, mas a forma de proteger esses direitos é um desafio.

Daya Laxmi

É preciso conscientizar as camponesas e os camponeses — e todas as pessoas — com relação aos seus direitos. O Nepal é um país diverso. Nossas línguas, nossa cultura, nossos rituais mostram nossa diversidade. É um país de muitas línguas, culturas e tradições diferentes, então como é possível alcançar a unidade na diversidade? É um país agrícola, e a maioria das mulheres do país depende dessa atividade, embora elas não tenham direitos e propriedade. As mulheres estão na terra. Segundo o último censo, de 2020, existem 1,5 milhão de mulheres engajadas na agricultura no Nepal, mas apenas 21% delas têm a propriedade da terra. O restante são mulheres sem-terra, ou a terra está no nome dos homens da família. A intervenção capitalista internacional é nosso maior desafio. Temos recursos naturais, mas que não são acessados pelas mulheres. O patriarcado é o obstáculo para a implementação dos direitos das mulheres.

Você pode falar mais sobre a dimensão patriarcal nas tradições culturais? Como as mulheres estão construindo o feminismo nessas tradições culturais?

Vivemos em uma sociedade patriarcal e desigual que, durante muito tempo, não permitiu que as mulheres saíssem da cozinha. Como consequência da luta das mulheres, durante a revolução popular de 2006, muitos de seus direitos foram garantidos. Depois da implantação da Constituição provisória do Nepal naquele ano, foi realizada uma eleição para a assembleia constituinte, e as mulheres nas lideranças ergueram a voz para garantir 33% de participação em todas as instituições que fazem parte do governo e nas organizações da sociedade civil. Atualmente, no nível federal, temos a presidência e a vice-presidência, e um desses cargos precisa sempre ser ocupado por uma mulher. Estamos construindo leis para garantir igualdade entre homens e mulheres, com paridade e sem discriminação.

Nossos desafios são proteger nossos direitos e implementar essas conquistas. Podemos nos espalhar, promover uma conscientização, organizar formações para as pessoas, para as mulheres. As mulheres estão destacando que as forças capitalistas e imperialistas aumentam a discriminação na sociedade. E para combater isso, precisamos construir nossas leis, como a Lei da Agricultura, a Lei de Combate à Violência Doméstica e as leis de implementação da UNDROP. Esses dispositivos legais, essas leis dão apoio aos direitos estabelecidos para as mulheres do país. Estamos lutando por uma reforma estrutural da sociedade.

Traduzido do inglês por Aline Scátola

Edição por Bianca Pessoa e Helena Zelic

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