Socializar os cuidados, transformar a economia

30/08/2024 |

Capire

Leia a síntese do seminário “Socializar o trabalho de cuidado: experiências e lutas feministas”

Depois de décadas de organização, mobilização e luta, passando recentemente pela pandemia de covid-19, hoje é possível afirmar que o cuidado entrou na agenda pública em diferentes partes do mundo. São diversos – e mesmo antagônicos – os horizontes e perspectivas mobilizados em torno dessa mesma agenda.  As experiências de movimento-pensamento feminista nos ajudam a compreender as disputas em torno dos cuidados.

Esse texto é uma síntese do seminário “Socializar o trabalho de cuidados: experiências e lutas feministas”, realizado virtualmente no dia 4 de junho de 2024, com a participação de Amanda Verrone, do Sindicato LAB do País Basco, Cecília Kitombe, do Ondjango Feminista de Angola, Dory Capera, da Confederação Sindical das Américas, Magdalena León, da Rede de Mulheres Transformando a Economia (Remte) do Equador, e Yessica Restrepo, da Confluência de Mulheres da Colômbia.

Pontos de partida 

A perspectiva que nos orienta considera o cuidado como trabalho, prática e relações que conformam a sustentabilidade da vida. É uma compreensão que não se restringe ao cuidado direto a uma pessoa, mas envolve o conjunto das condições de possibilidade da vida, ou seja, as pessoas, a alimentação, as sementes e os bens comuns e as diferentes formas de relação econômica que vão além daquilo que se compra e vende no mercado. Situamos o cuidado nas relações de interdependência, afirmando a autonomia e autodeterminação como princípios. Também consideramos o cuidado como parte da ecodependência, indo além da vida humana.

Como foi compartilhado a partir da Rede de Mulheres Transformando a Economia (Remte), o cuidado é uma experiência econômica e integral das mulheres. É um trabalho feminizado e racializado que se realiza em diferentes contextos, espaços e circunstâncias e é permeado por contradições. Ao mesmo tempo em que pode mobilizar e criar princípios éticos para a vida em comum (como a solidariedade e a reciprocidade), a responsabilização pelos cuidados está imersa em relações de opressão de gênero, raça e classe. Um desafio de partida é recuperar essa experiência como catalisadora de transformações estruturais nas formas de (re)produzir a vida em comum.

O que hoje se nomeia como cuidado tem raízes no que o feminismo socialista há décadas elaborou em termos de reprodução e que a economia feminista sistematizou na aposta pela sustentabilidade da vida. Essa perspectiva se relaciona, ainda, com a ampliação da noção de conflito capital-trabalho para a noção de conflito capital-vida, explicitando que a lógica da acumulação de capital é incompatível com a lógica do cuidado e da sustentação da vida.  

O cuidado na agenda a partir da construção de movimento 

São diversas as estratégias e ferramentas para colocar o cuidado no centro da agenda política.  Em Angola, por exemplo, o Ondjango Feminista organizou uma pesquisa com as mulheres para introduzir esse tema na sociedade. Em praças, mercados e escolas, o grupo conversou com as mulheres sobre como usam o tempo. Com taxa de fecundidade superior à média mundial (5,3 em Angola, 2,2 na média mundial), as mulheres relataram que o cuidado com os filhos está entre as responsabilidades que mais as sobrecarregam no dia a dia. Elas concluíram que, mesmo sem uma política de cuidado, existe efetivamente um sistema de cuidado apoiado no trabalho não remunerado das mulheres.

Na América Latina, o cuidado esteve no centro das respostas das mulheres às ofensivas do neoliberalismo para privatizar os serviços públicos de educação e saúde, por exemplo. A memória e atualidade dessas lutas são a referência para desconfiar das propostas de organismos como o Fundo Monetário Internacional (FMI) em torno dos cuidados. As imposições do FMI sobre as políticas econômicas dos países endividados aumentam o custo de vida e reduzem o investimento do Estado em serviços públicos, se apoiando em mais sobrecarga de trabalho não remunerado das mulheres. O FMI aborda a maior responsabilidade das mulheres pelo cuidado como um obstáculo para sua participação no mercado de trabalho. Sem alterar suas condições, estimula falsas soluções baseadas no setor privado e na precarização. Trata-se de uma perspectiva de inclusão das mulheres nesse sistema, sem transformar as estruturas de opressão. Portanto, não serve à maioria das mulheres da classe trabalhadora.

As lutas territorializadas pelo direito à creche e a espaços coletivos para a alimentação têm sido o alicerce das elaborações em torno do direito ao cuidado – que envolve tanto os direitos de quem é cuidado como os de quem cuida. Nessa perspectiva, há um movimento simultâneo pelo reconhecimento, redistribuição e valorização social e econômica do trabalho de cuidado, como relatam as companheiras da Confederação Sindical das Américas. Assim, entendemos que o trabalho não é só aquele que é assalariado – eixo que tem sido fundamental nas lutas das cuidadoras domiciliares.

A divisão sexual do trabalho, sempre articulada com a divisão racial do trabalho, forma a base material da opressão das mulheres. Além de separar o trabalho de homens e mulheres, a produção e a reprodução, essa divisão ainda hierarquiza essas esferas. Seja sem remuneração ou mal remunerado, o trabalho doméstico e de cuidados e as pessoas  que o realizam – mulheres, negras, imigrantes – são desvalorizados. Quando são feitos com remuneração, esses trabalhos se realizam em condições de precariedade e sem proteção social.

As companheiras do Sindicato LAB compartilharam o caminho de mobilização de uma greve geral pela socialização dos cuidados no País Basco, em novembro de 2023. Protagonizada pelo movimento feminista, essa foi uma construção que envolveu diferentes setores do sindicalismo, inclusive os trabalhadores da indústria e das telecomunicações. A greve tem antecedentes em um processo de recomposição da classe trabalhadora no sindicato. Assim, os cuidados foram inseridos na agenda das lutas contra a privatização.

As sindicalistas feministas posicionaram a luta pelas condições de vida e trabalho das trabalhadoras domésticas e cuidadoras como eixo de reivindicação, junto com a perspectiva de lutar por tempos para o cuidado para o conjunto da classe trabalhadora. Esses eixos se relacionam à luta por um sistema público-comunitário de cuidados. Isso se deu a partir da auto-organização das mulheres em uma secretaria feminista, da consolidação de uma perspectiva antirracista, da construção de alianças e de uma combinação de ferramentas de mobilização e formação.  

Ao organizar uma greve geral com tais reivindicações, ficou evidente que nem todas as trabalhadoras têm direito a fazer greve, porque há trabalhos que simplesmente não podem deixar de ser feitos, como é o caso dos cuidados. Esse processo foi histórico para o movimento sindical e reformulou, na prática, o conceito clássico de greve, uma vez que amplia a noção de trabalho.

É preciso avançar na elaboração sobre a realidade concreta do trabalho de cuidado. Muito do que se compreende sobre o trabalho de cuidado é como um espelho do trabalho assalariado. Houve avanços em falar da redistribuição, dos tempos e dos direitos, mas pouco se aborda sobre as lógicas desse trabalho. Isso só pode ser debatido considerando as experiência das mulheres, suas redes, relações e também tecnologias. Isso necessariamente se articula com as condições de trabalho e possibilidades de socialização, articulando as dimensões públicas e comunitárias. Uma pista compartilhada foi a de recuperar os princípios, relações e dinâmicas de cuidado que estão no coração da sustentabilidade da vida — e, portanto, da economia — para transformá-la.

Políticas públicas para reorganizar os cuidados e colocar a vida no centro

Estão em curso, especialmente na América Latina, diferentes experiências de construção de políticas nacionais de cuidado, como no Brasil. Algumas delas se dão na forma de sistemas nacionais de cuidado. Essas construções têm mais possibilidade de contribuir para transformar as bases da desigualdade quando estão sintonizadas com políticas redistributivas dos governos em questão.

As companheiras da Confluência de Mulheres da Colômbia compartilharam sua experiência atual. No país, o Estado tem dado suporte para a criação de um sistema de cuidado que une políticas para mulheres e experiências de políticas territorializadas. O principal exemplo é o das Manzanas de Cuidado, espaços públicos para os cuidados que também promovem autonomia das mulheres. Eles criam as possibilidades de coletivizar o trabalho e realizar tarefas que seriam feitas dentro de casa, como lavar as roupas. Isso contribui para que as mulheres tenham tempo de descansar, socializar e ter mais autonomia. Em um território afetado por muitos anos de conflito armado e forças paramilitares e pelo avanço das empresas transnacionais da mineração, as mulheres compartilham essa aposta por entender que, no campo e na cidade, o cuidado comunitário é um trabalho e uma prática de liderança das mulheres, o que implica tempo e necessidades organizativas.

Efetivamente, existem os sistemas de cuidado ideais e os sistemas de cuidado de fato, onde há simultaneamente sobrecarga e protagonismo das mulheres. Cuidar envolve tempo de trabalho, organização de redes de cuidado e mobilização de diversos recursos em torno do cuidado da vida em comum.

Diante do limite de sobrevivência da humanidade e do planeta, é preciso construir as condições para romper com a lógica da acumulação, transformar a reprodução mas também mudar a produção (o que se produz, como, para que e para quem?) a partir da lógica do cuidado e sustentabilidade da vida. Aí se situa a potência de transformar toda a economia a partir da lógica e dos tempos do cuidado.

O webinário foi organizado pela SOF Sempreviva Organização Feminista, a Marcha Mundial das Mulheres do Brasil e o Capire, com apoio do Ministério das Mulheres do governo federal do Brasil pelo fomento n° 954083/2023.

Redação por Tica Moreno
Revisão por Helena Zelic

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