Como parte da agenda de lutas do dia 25 de novembro, Dia Internacional pela Eliminação da Violência Contra as Mulheres, a La Via Campesina (LVC) lançou a publicação “Justiça climática e feminismo camponês popular”. A publicação conta com cinco capítulos e um glossário que tratam dos principais desafios e os caminhos trilhados para uma transição climática justa. Para a Via Campesina, “o Feminismo Camponês e Popular propõe uma visão transformadora que visibiliza o papel das mulheres camponesas, negras, indígenas, pescadoras, pastoras, coletoras, trabalhadoras sazonais, migrantes e trabalhadoras na alimentação e no cuidado dos territórios e da vida. A partir dessa reflexão coletiva, propomos alternativas reais às diferentes crises desde os territórios”.
A publicação está disponível em português, inglês, francês e espanhol, e pode ser acessada gratuitamente aqui. Abaixo está um trecho do terceiro capítulo, sobre a relação entre a luta por justiça climática, os impactos da crise nos territórios e a resistência das feministas do campo.

Justiça climática e feminismo camponês e popular
Para a Via Campesina, falar de justiça social e climática implica uma profunda transformação do sistema econômico, social e político, bem como em avançar nos processos de reparação da dívida ecológica e das injustiças históricas cometidas contra os camponeses. Para isso, é preciso reconhecer que as lutas do campo não são concebidas de forma isolada, elas respondem a um mesmo sistema de opressão: capitalista, colonial, racista e patriarcal, que explora os povos, a natureza e as mulheres. Não há futuro climático sem as mulheres. Após uma crise climática, a desigualdade de gênero e a sobrecarga invisível sobre as mulheres é uma realidade alarmante.
As mulheres das comunidades ribeirinhas, florestais, urbanas e rurais carregamos o peso das crises, mas também temos a força das soluções. Todas e cada uma de nós continuamos em marcha e organizadas contra as opressões pela terra, pelo pão e pela justiça climática.
Desde a construção da nossa proposta do Feminismo Camponês e Popular, buscamos garantir não só a nossa participação e ação, mas também a justiça ambiental e a justiça social. Nós, mulheres e de diversidades camponesas, indígenas, pescadoras, migrantes, pastoras, temporárias, assalariadas e negras, temos um papel essencial nas transformações. Da agroecologia à transição energética, das ruas às aldeias, nós mulheres enfrentamos o capital, as corporações e as falsas soluções diariamente.
Não apenas resistimos, mas também construímos e defendemos alternativas reais para mitigar os efeitos das mudanças climáticas em nossas comunidades e territórios, fazendo isso através da defesa da Soberania Alimentar, da promoção da Agroecologia Camponesa e da reivindicação dos direitos históricos à educação, saúde reprodutiva e moradia para uma vida digna.
Essas ações são os pilares de uma proposta feminista com identidade própria (camponesa e popular) que surge da realidade de viver no campo e das experiências como mulheres e de diversidades das classes populares para promover o bem-estar de nossos povos camponeses, em que alimentamos a humanidade e cuidamos da natureza. Esta abordagem coloca no centro o cuidado, a vida e o direito das comunidades de decidir livremente sobre os nossos territórios e as nossas formas de habitar o mundo (LVC, 2020).
As consequências das mudanças climáticas prevalecem na maioria dos países, principalmente no Sul Global, impactando aqueles que produzem tudo e possuem pouco: trabalhadores, famílias e comunidades que vivem em locais socialmente vulneráveis dentro das cidades e no campo (LVC, 2023).
No entanto, nem todas as pessoas são afetadas da mesma forma. As comunidades e famílias camponesas, as mulheres, as crianças, as diversidades do campo e os grupos vulneráveis são os que sofrem mais duramente as consequências. Apesar de sermos guardiãs das sementes, dos conhecimentos ancestrais e das práticas sustentáveis, continuamos a ser excluídas dos espaços de tomada de decisão e dos benefícios das políticas públicas.
Os impactos da crise climática na vida das mulheres colocam em risco a segurança alimentar, agravam a pobreza, deslocam comunidades e aprofundam as desigualdades estruturais. Por isso, integrar nossas vozes, conhecimentos e lideranças nas estratégias da luta climática é uma necessidade urgente para avançar em direção a uma verdadeira justiça climática.
Pois, se por um lado, as mudanças climáticas fazem parte de uma crise global, por outro lado, seus impactos são locais, têm nome e sobrenome e são, acima de tudo, femininos. Enquanto o mundo debate políticas ambientais, são as mulheres das periferias, dos campos e das águas, florestas e selvas, juntamente com nossas comunidades, que enfrentamos na pele os piores efeitos de um planeta em colapso.
Impactos da crise climática na vida das mulheres e diversidades camponesas
Racismo climático e maior vulnerabilidade
■ A ONU aponta que elas estão 14 vezes mais expostas aos riscos de desastres climáticos, como chuvas intensas ou tufões, e enfrentam maiores obstáculos para acessar ajuda humanitária.
■ A atenção aos desastres e os benefícios das políticas de recuperação são distribuídos de forma desproporcional em favor das comunidades brancas e ricas, em detrimento das comunidades negras, indígenas, camponesas, operárias, etc.
Carga de trabalho não remunerado
■ Realizam, minimamente, duas vezes e meia a mais que os homens, o trabalho doméstico e de cuidados não remunerados. Durante os desastres climáticos, essas cargas se intensificam ainda mais.
Pobreza e insegurança alimentar
■ As mudanças climáticas agravam a pobreza e a insegurança alimentar. Quando há menos alimentos disponíveis ou os preços sobem, devido a secas, inundações ou outros desastres climáticos, as famílias camponesas, especialmente as mulheres e as meninas, têm dificuldade para se alimentar. Isso as torna mais vulneráveis à fome e à desnutrição.
■ Se medidas urgentes não forem tomadas, a ONU alerta que, até 2050, haverá mais de 158 milhões de mulheres e meninas em situação de pobreza devido às mudanças climáticas, e outras 236 milhões enfrentarão insegurança alimentar.
Acesso desigual aos recursos
■ Elas têm menos acesso a recursos como terra, sementes, crédito, educação e tecnologia. Além disso, costumam ser excluídas das compensações econômicas quando perdem terras devido a desastres climáticos. Os danos à produção agrícola (atividade na qual muitas trabalham) raramente são indenizados de forma justa.
Despejadxs / refugiadxs climáticos ou ambientais
■ Quando a produção agrícola é afetada, muitas pessoas e comunidades são forçadas a migrar para as cidades ou para o exterior, onde as mulheres e as diversidades ficam expostas a trabalhos precários, informais ou domésticos.
■ Em situações de vulnerabilidade, deslocamento, refúgio climático e migração forçada, idosos, mulheres e crianças estão expostos a múltiplos tipos de violência e abuso.
O papel das mulheres e das diversidades camponesas na luta climática
Nós, mulheres e diversidades camponesas, pescadoras, pastoras, indígenas, quilombolas e dos povos originários, sem-terra, migrantes e assalariadas agrícolas, questionamos e enfrentamos os processos que geram a crise climática por meio de múltiplas formas de ação e resistência que desenvolvemos em nossos territórios e comunidades:
- Promovemos nossos direitos, lideramos e exigimos participação ativa na tomada de decisões;
- Estamos na primeira linha de defesa e cuidado da natureza, de seus bens e de seus territórios. Nós que protegemos diretamente os bens naturais, bem como nos encargamos do cuidado de nossas comunidades.
- Possuímos conhecimentos ancestrais, habilidades e uma resiliência inestimável para combater os efeitos da mudança climática.
- Lideramos iniciativas na Agroecologia, na Soberania Alimentar, nos Direitos Camponeses, na cooperação e na solidariedade internacionalista, questões fundamentais para enfrentar a crise climática e avançar rumos a justiça social.
Elementos e bases da justiça climática a partir do Feminismo Camponês e Popular
DEFESA DO TERRITÓRIO COMO ESPAÇO DE VIDA
Repúdio à grilagem de terras, à concentração injusta de recursos, ao modelo extrativista, à conversão da natureza em mercadoria e à exploração dos bens comuns.
PROTAGONISMO DAS MULHERES E DIVERSIDADES CAMPONESAS
Reconhecimento das mulheres e diversidades do campo como principais atoras na luta contra as mudanças climáticas, por serem guardiãs das sementes, dos conhecimentos ancestrais e das práticas sustentáveis e agroecológicas contra as mudanças climáticas.
RECONHECIMENTO DAS DESIGUALDADES ESTRUTURAIS INTERSECCIONAIS
A classe social, a etnia e o gênero influenciam diretamente a forma como os efeitos das mudanças climáticas são vivenciados, gerando impactos desiguais. As mulheres, as diversidades camponesas e outros grupos historicamente vulneráveis são os que enfrentam as piores consequências.
LUTA CONTRA O SISTEMA CAPITALISTA, COLONIAL, RACISTA E PATRIARCAL
A luta contra a crise ambiental e climática é um luta estrutural, já que é uma consequência direta do sistema capitalista, colonial e patriarcal. Nesse contexto, as mulheres e diversidades do campo enfrentam variadas formas de violência.
SOBERANIA ALIMENTAR, AGROECOLOGIA E DIREITOS CAMPONESES
Promove-se a construção de sistemas alimentares e sustentáveis baseados na Agroecologia Camponesa. Defesa e pleno reconhecimento dos Direitos Camponeses. Rejeitar o modelo agroalimentar dominantes, bem como as falsas soluções defendidas pela chamada “Economia Verde”, que pioram a desigualdade e perpetuam o extrativismo.
JUSTIÇA SOCIAL E CLIMÁTICA COMO LUTA COMUM
A justiça climática não pode ser alcançada sem uma profunda transformação do sistema econômico, social e político que sustenta as desigualdades atuais. Implica também o reconhecimento e a reparação da dívida ecológica e das injustiças históricas cometidas contra os povos do campo. Porque não há justiça climática sem justiça social, e não há justiça social sem o Feminismo Camponês e Popular como horizonte de luta e transformação.
