Capital em detrimento da vida: quando um desastre natural se torna uma questão política

04/04/2023 |

Pınar Yüksek

Leia o artigo de Pınar Yüksek sobre as lutas para sustentar a vida após os terremotos na Turquia e na Síria

Em fevereiro, testemunhamos dois grandes terremotos no sudeste da Turquia e no noroeste da Síria com epicentros localizados em Cacramanemaraxe (cidade localizada no sul-sudeste da Turquia). Esses terremotos impactaram 11 grandes cidades. De acordo com informações oficiais, aproximadamente 50 mil pessoas perderam a vida e milhões ficaram feridas nesses terremotos. Além disso, outras milhões de pessoas perderam suas casas. Mais de 100.000 edificações foram demolidas em consequência dos terremotos. Ademais, algumas cidades foram completamente destruídas juntamente com toda a nossa riqueza cultural e patrimônio histórico. Um terremoto é considerado um desastre natural. Ainda assim, a extensão da destruição e os resultantes esforços de socorro descoordenados transformaram o terremoto na Turquia em uma catástrofe. Embora dois meses tenham se passado desde o terremoto, o governo do Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP), mais uma vez, demostrou como destruiu todas as organizações. Eles não tiveram a capacidade de fornecer tendas e abrigo para seus cidadãos cujas casas foram demolidas ou tornaram-se inabitáveis durante os dias frios de inverno.

O governo do AKP, que está no poder na Turquia há vinte anos, ignorou todos os direitos e necessidades básicas de seus cidadãos. Da habitação à saúde, ficamos à mercê dos mercados e da ganância devido às políticas neoliberais que implementou desde o dia em que assumiu o controle do Estado. Hoje, o governo e suas políticas transformaram um desastre natural em uma catástrofe. Por isso mesmo, a importância de priorizar a vida em detrimento do capital foi demonstrada novamente, ainda que, em decorrência de acontecimentos trágicos.

A principal razão para o desastre atual é que as políticas implementadas pelo governo do AKP são direcionadas contra o interesse público. Trata-se de um governo que descarta a razão e todas as formas de ciência e conhecimento e só trabalha para gerar lucro para indivíduos por meio da exploração do bem público e das riquezas. O caso dos terremotos de fevereiro é uma ilustração exemplar da concepção que este governo tem das instituições e responsabilidades do Estado.

Na Turquia, a Presidência de Gestão de Emergências e Desastres (AFAD) é uma instituição governamental subordinada ao Ministério do Interior e é responsável por fornecer essa coordenação. Após a fundação da AFAD, outras instituições autônomas do país filiaram-se à AFAD e não têm autorização para atuar de maneira independente dela.

Apesar de se declarar autônoma, a AFAD estava ligada ao Ministério do Interior (com base nos estatutos atualizados do ministério) e tornou-se completamente disfuncional ao longo dos anos. Pessoas sem experiência e conhecimento em gestão de desastres foram colocadas em posições de poder na organização (devido à sua proximidade com o governo). Logo, a organização tornou-se carente de infraestrutura e não acompanhou a evolução tecnológica da área. 

As horas que se seguem a um terremoto são muito críticas: a única maneira de salvar a vida de muitas pessoas é iniciar imediatamente as operações de busca e salvamento, principalmente, considerando a magnitude do terremoto e o número de pessoas e cidades afetadas. Consequentemente, é também crucial assegurar a coordenação de todas as instituições e organizações da sociedade civil para que intervenham com urgência. Como resultado da falta de capacidade da AFAD para lidar com o recente terremoto, as operações de busca e salvamento não foram iniciadas a tempo. A ajuda não foi organizada e as organizações civis e estatais relevantes que, definitivamente, deveriam participar da gestão do desastre, não foram incluídas no processo devido a preferências políticas. Tudo isso fez com que as dimensões do desastre aumentassem ainda mais. Por dias após o terremoto, as pessoas que ficaram presas sob os escombros morreram congeladas ou de fome enquanto esperavam pelas equipes de busca e resgate. Isso resultou no surgimento de uma cena muito trágica e grave.

Por outro lado, e como resultado das políticas de privatização do estado, a Kızılay (Crescente Vermelha), a organização de ajuda mais antiga da Turquia, se tornou uma empresa. Essa organização de ajuda, que poderia ter fornecido ajuda gratuita a milhões de pessoas que lutavam para sobreviver após o terremoto, foi transformada em uma organização que vende barracas, alimentos e itens de necessidades básicas para ONGs em troca de dinheiro.

Diante de toda essa terrível situação, a sociedade turca realizou uma enorme mobilização de solidariedade em todo o país. Todos colocaram seus recursos e habilidades em prol da vontade coletiva. As pessoas coletaram roupas, alimentos e itens de necessidades básicas em todas as regiões da Turquia e começaram a enviar as doações para as regiões afetadas. Apesar de todas as restrições do estado, as pessoas usaram suas capacidades para se dirigir à zona do terremoto e ajudar a distribuir ajuda. Algumas cozinhavam, enquanto mineiros experientes participavam de operações de busca e resgate. Além disso, os médicos trabalhavam duro em instalações limitadas para ajudar cidadãos feridos. Paralelamente, um movimento internacional de solidariedade se mobilizou rapidamente para ajudar. Essa mobilização de solidariedade social também se transformou em uma resistência contra o governo e a destruição que ele causou.

Um problema antigo

Os problemas já existentes exacerbaram a gravidade dos problemas na zona sísmica. Migrantes, pessoas da comunidade LGBTQIA+ e mulheres nas regiões afetadas passaram a enfrentar problemas mais complexos após o terremoto. O fato de ainda não haver energia elétrica disponível na zona do terremoto representa uma importante questão de segurança para as mulheres à noite. Elas também correm mais riscos de desenvolver problemas de saúde devido às necessidades de higiene. Além disso, como resultado da divisão sexista do trabalho, as mulheres precisam manter o fluxo da vida e continuar seu trabalho de cuidado ininterruptamente. Logo, essa questão aumenta os fardos que elas carregam e afetam sua saúde mental.

Milhões de pessoas que sobreviveram e perderam suas casas e parentes não tiveram acesso a condições de vida respeitosas e saudáveis. É possível dizer que ainda existem práticas que ameaçam a saúde pública em muitos estágios diferentes, como habitação segura, condições de higiene e acesso a água limpa e potável.

Esse terremoto despojou o governo político islâmico do AKP: o partido no poder junto com todas as suas organizações. O governo do AKP não funciona como um Estado capaz de atender às necessidades de seus eleitores. Trata-se de um comando centralizado que serve às grandes corporações e aos interesses de poucos. A sociedade turca vivenciou, mais uma vez, as consequências da apropriação de recursos públicos pelo capital, clientelismo e pilhagem. Esse governo desconsidera as necessidades básicas das pessoas, privatiza as instituições estatais e adota uma concepção de governar que descarta completamente a lógica, as ciências ou os saberes, substituindo-os por superstição e lucro.

Enquanto nos preparamos para as eleições a ser realizadas em 14 de maio, acreditamos que o entendimento que reconstruirá o futuro da Turquia contra o colapso vivido nos últimos 20 anos está oculto nessa solidariedade demonstrada e vivida por toda a sociedade. A luta contra a usurpação dos direitos à vida e à subsistência, contra as corporações capitalistas imperialistas, contra o governo que não apoia as pessoas, contra a precariedade, contra as relações patriarcais, tem mais uma chance de se manifestar agora. Temos o potencial para construir uma nova sociedade contra os perpetradores da usurpação. Reconstruiremos nossas cidades e nossas vidas com essa resistência que valorizará a vida em detrimento do capital. Viva a solidariedade!

Pınar Yüksek é integrante da Marcha Mundial das Mulheres na Turquia e faz parte da equipe do Secretariado Internacional.

Editado por Bianca Pessoa
Traduzido do inglês por Rane Souza

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