As mulheres sustentam metade do céu: como a China erradicou a pobreza extrema

08/10/2021 |

Por Tings Chak

Leia o texto de Tings Chak sobre a organização popular e as políticas de enfrentamento à pobreza na China.

Tongren, Guizhou, China, 2021. Tricontinental.

A erradicação da pobreza extrema é vista não como um objetivo final, mas como uma etapa importante da construção do socialismo. Afinal, a pobreza é um problema da luta de classes.

A Avó He nasceu três anos depois da Revolução Chinesa em um povoado pobre na província de Guizhou, no sudoeste da China. Na época, o país era o 11.º mais pobre do mundo – ou seja, apenas oito nações africanas e duas asiáticas tinham um Produto Interno Bruto (PIB) per capita menor. Um “século de humilhação” nas mãos do imperialismo europeu e japonês e uma guerra civil sangrenta haviam transformado aquela que era a maior economia do mundo no início do século 19 em uma das mais pobres no momento em que a República Popular da China (RPC) foi instituída, em 1949. Esse histórico deixou marcas devastadoras na vida das pessoas, sobretudo das mulheres camponesas.

Quando Avó He nasceu, sua expectativa de vida era de 35 anos. Provavelmente seria submetida ao casamento ainda na infância e jamais seria alfabetizada. No entanto, ao longo de sua trajetória, ela viu sua própria expectativa de vida dobrar, a alfabetização de mulheres saltar de menos de 10% para mais de 95% e as tradições feudais patriarcais serem desmanteladas. Uma das primeiras leis promulgadas na RPC foi a Lei do Casamento, de 1950, que proibiu práticas de casamento envolvendo crianças e uniões não registradas, baniu a poligamia de homens e permitiu o divórcio.

Segundo um levantamento da publicação The Lancet que investigou os 70 anos de saúde da mulher na China, “afirmações como ‘as mulheres sustentam metade do céu’ e ‘as crianças são o futuro e a esperança de nossa terra-mãe’ não são apenas recursos retóricos, mas foram colocadas em prática de forma consistente”. Para dar um exemplo, o estudo destaca os avanços na redução da mortalidade materna: de 1.500 casos por cada 100 mil nascimentos em 1949, essa taxa caiu para 17,8 em 2019. Para fins de comparação, no mesmo período, a mortalidade materna no Brasil caiu de 370 para 60 e, na Índia, de 1 mil para 145 por 100 mil nascimentos. Em outras palavras, tendo um coeficiente de mortalidade materna muito mais alto no início da série histórica, a China conseguiu, em sete décadas, baixar esse indicador para menos de um terço da taxa brasileira e para o equivalente a um oitavo dos números da Índia. Pelas conquistas impressionantes em saúde reprodutiva e materna das mulheres e também na saúde de recém-nascidos, crianças e adolescentes, a The Lancet cita uma “forte vontade política” e “avanços na igualdade de gênero” como fatores essenciais para esse êxito. E são poucos os lugares onde essa tendência seja mais evidente do que no combate à pobreza.

Em 25 de fevereiro de 2021, a China anunciou que a pobreza extrema no país de 1,4 bilhão de habitantes foi erradicada ao longo dessas sete décadas. Nos últimos 40 anos, a China tirou 850 milhões de pessoas da pobreza. Esse número equivale a quase toda a população da América Latina, do Caribe e mais um Brasil juntos, o que contribuiu para reduzir em 76% o índice global de pobreza. Esse feito histórico fica ainda mais impressionante no momento em que há uma grande pandemia, que provocou o primeiro aumento no índice global de pobreza humana desde 1998, sobretudo no sul global. Avó He e sua família estão entre as últimas 98,99 milhões de pessoas que deixaram a pobreza extrema na China – metade delas eram mulheres.

Compreendendo o processo de esforços da China para reduzir a pobreza no país, o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social lançou o estudo Servir ao povo: a erradicação da pobreza extrema na China, que se baseou na literatura acadêmica e em artigos publicados na imprensa, entrevistas com especialistas e pesquisa de campo na província Guizhou, no sudoeste do país. O estudo, disponível em inglês, espanhol e português, concluiu que, em primeiro lugar, a China se apoiou em uma abordagem multidimensional para erradicar a pobreza, em vez de apostar em programas de transferência de renda ou políticas de bem-estar. Em segundo lugar, a força da campanha está nos esforços de construção do partido, sobretudo com o apoio popular no campo. Em terceiro lugar, o governo chinês demonstrou capacidade de mobilização de toda a sociedade e de seus recursos. Em quarto, o programa deu centralidade ao papel da população camponesa pobre que era tirada – e se tirava – da pobreza, como protagonista do processo. Por fim, a erradicação da pobreza extrema é vista não como um objetivo final, mas como uma etapa importante da construção do socialismo. Afinal, a pobreza é um problema da luta de classes.

Tangtou, Guizhou, China, 2020. Yang Wenbin/Xinhua.

Não atire uma granada para atingir uma pulga

Quando Xi Jinping assumiu a presidência, em 2013, o “programa direcionado de redução da pobreza” (PDRP) se tornou a estratégia  nacional dedicada a alcançar os bolsões de pobreza mais difíceis, que não estavam se beneficiando das décadas anteriores de desenvolvimento econômico. “Não atire uma granada para atingir uma pulga”, afirmou Xi, reconhecendo que, para enfrentar a pobreza, o governo precisaria localizar com precisão cada família pobre e desenvolver um plano para tirá-las dessa condição. Ao longo da execução do programa, US$ 246 bilhões foram gastos para construir 1,1 milhão de quilômetros de estradas na zona rural, levar acesso a internet para 98% dos povoados pobres do país, reformar a casa de 25,68 milhões de pessoas e construir casas novas para outras 9,6 milhões. Ao fim de 2020, as 98,99 milhões de pessoas que ainda estavam na pobreza extrema em 832 condados e 128 mil povoados conseguiram sair desse patamar.

O programa foi conduzido pela política central que propõe: uma renda, dois seguros e três garantias. Na China, a linha da pobreza está definida em US$ 2,3 por dia (ajustado para Paridade do Poder de Compra – PPC), base mais alta que o padrão de US$ 1,90 por dia estabelecido pelo Banco Mundial. Além da renda, o PDRP também aposta em “dois seguros” de alimentação e vestuário e “três garantias” de serviços médicos básicos, habitação segura com eletricidade e água potável e educação pública obrigatória. Em outras palavras, a China adotou uma abordagem multidimensional para combater a pobreza, guiada por uma renda mínima e, ao mesmo tempo, oferecendo à população rural pobre elementos essenciais de alimentação, educação, habitação e atendimento de saúde.

Estar no meio do povo como o peixe no mar

A mobilização de quadros do partido foi essencial para o combate à pobreza. Em 2014, 800 mil quadros foram organizados para bater de porta em porta em milhões de lares em 128 mil povoados em todo o país. A tarefa deles era identificar cada família que seria registrada no programa nacional, com base em renda, escolaridade, condições de moradia e acesso à saúde. O banco de dados nacional de 100 milhões de indivíduos foi criado para auxiliar no planejamento e na implantação de programas para cada um.

A Federação Nacional de Mulheres da China (FNMC), organização de massa de mulheres liderada pelo Partido Comunista da China (PCC), teve papel fundamental na incorporação das lutas enfrentadas pelas camponesas na estrutura e nas práticas do PDRP. Por exemplo, um estudo de 2010 concluiu que, entre trabalhadoras, as mulheres dos condados mais pobres apresentavam taxas de pobreza (9,8%) e analfabetismo (15,7%) mais altas que os homens, além de ter menos acesso a capacitação técnica e participação social. A FNMC não apenas constituiu parte dos principais órgãos governamentais do país à frente do PDRP, como também organizaram o trabalho de base pela internet e nos territórios, com atuação que foi desde a criação de 900 mil grupos de “companheiras” no WeChat (similares aos do WhatsApp) até as 641.291 organizações populares nos povoados de todo o país. Além da identificação, três milhões de quadros cuidadosamente selecionados foram enviados para morar no campo durante anos, formando 255 mil equipes residentes. Uma equipe por povoado, um quadro por família. Ao lado da população, um processo de “avaliação democrática” foi realizado, em que membros da comunidade debatiam e votavam sobre questões relacionadas à situação de pobreza de cada família – quem deveria entrar no registro como pobre, quem tinha saído da pobreza e, por vezes, quem tinha voltado para ela. Houve um alto nível de decentralização, improvisação e democracia popular em ação. As condições foram árduas e 1.800 quadros perderam sua vida no processo.

Frente unida contra a pobreza

Para além de cultivar o Partido e o apoio popular, a campanha mobilizou setores mais amplos da sociedade em uma “frente unida” contra a pobreza, incluindo setores públicos, privados e civis da sociedade. Os cinco métodos centrais de enfrentamento à pobreza foram: desenvolver a indústria, incentivar a compensação ecológica, garantir educação gratuita, de qualidade e obrigatória, promover realocação e oferecer assistência social. O principal mecanismo é o desenvolvimento da indústria, ou seja, desenvolver a capacidade produtiva e, especificamente, a produção agrícola modernizada. O segundo método foi a compensação ecológica, com a criação de empregos ligados ao trabalho de plantação de novas florestas, recuperação de terras agricultáveis e restauração de áreas vitimadas pela hiperexploração. Em terceiro lugar, entre as medidas para melhorar a qualidade da educação estavam a construção de novas escolas, a capacitação de professoras e professores e o oferecimento de grandes incentivos para estudantes de famílias camponesas ou pobres acessarem a universidade. Em consequência disso, entre 2011 e 2018, 70% das e dos universitários chineses matriculados no primeiro ano foram os primeiros da família a entrar no ensino superior, e 70% tinham origem camponesa. Em 2020, a China já era o primeiro país do mundo em número de mulheres matriculadas na educação terciária, segundo o Relatório Global de Desigualdade de Gênero do Fórum Econômico Mundial.

Para quem vive em regiões extremamente afastadas ou suscetíveis a desastres, é quase impossível romper o ciclo de pobreza sem se realocar. Menos de 10% das pessoas que conseguiram sair da pobreza fizeram isso se mudando para outras regiões. A China construiu casas novas – gratuitas, mobiliadas e localizadas em comunidades com escolas e clínicas de saúde – para 9,6 milhões de pessoas participantes do programa, nos casos em que esse era o último recurso. Por fim, sobretudo para quem não tem condições de trabalhar, como pessoas idosas ou com deficiência, o método final de alívio da pobreza adotado foi a assistência social.

O PDRP fez parte da implantação do Programa Nacional de Desenvolvimento das Mulheres (2011-2020), que priorizou as mulheres no acesso a recursos e apoio, como no acesso a saúde, empréstimos de microcrédito e capacitação profissional. Um total de 10,21 milhões de mulheres registradas no PDRP tiveram acesso a cursos de capacitação, sendo mais de 5 milhões trabalhadoras na produção agrícola e pecuária, no artesanato, no turismo e no mercado eletrônico. Os empréstimos de microcrédito ajudaram 8,7 milhões de mulheres a começarem o próprio negócio. O oferecimento de exames gratuitos para detecção de câncer de mama e de colo do útero foi ampliado para todos os povoados pobres registrados no programa, em um esforço para reduzir os índices de pobreza provocada por doenças, enquanto cerca de US$ 640 milhões foram investidos na promoção de infraestrutura, benefícios de saúde e necessidades diárias para 50 milhões de mães pobres.

Protagonismo da população pobre

Como muitas outras camponesas pobres, a filha de Avó He, He Ying, era trabalhadora migrante em outra província. Durante uma década, o filho dela ficou no povoado sob os cuidados de Avó He, enquanto He Ying só podia visitá-los uma vez por ano. Quando ficou grávida do segundo filho, He Ying optou por se inscrever no programa governamental de alívio da pobreza e se realocou para a nova comunidade de Wangjia, apesar de enfrentar, a princípio, a oposição da mãe, do pai e da sogra. O processo de mudança para um lugar ainda desconhecido é difícil para muitas pessoas idosas que não conhecem outra vida além do seu próprio território.

No entanto, sendo uma pessoa pobre participante do processo de ser tirada, se tirar e tirar a própria família da pobreza, He Ying se filiou ao PCC. Hoje, ela está entre os 12 quadros da comunidade realocada de Wangjia, atendendo às necessidades diárias de 18 mil residentes realocados. Como presidenta do diretório local da FNMC, He Ying ajuda a construir confiança entre as camponesas que migraram mais recentemente para superarem os muitos desafios que enfrentam. A partir de sua própria experiência pessoal, ela reconhece a dificuldade que muitas pessoas têm na transição entre o povoado e a cidade. Nos primeiros meses de realocação, o marido de He Ying foi ficando cada vez mais incomodado com a nova independência da mulher como liderança.

“Falei [para as mulheres do território] que as mulheres podem sustentar metade do céu”, afirmou He Ying. “Se trabalhassem, teriam mais respeito dos maridos e aliviariam o fardo [financeiro] das famílias.” As dez pessoas da família de He Ying moravam juntas em uma casa de 80 metros quadrados. Hoje, elas se dividem entre três apartamentos espaçosos com um total de 200 metros quadrados, em uma comunidade com três centros comunitários de saúde, creches bem-estruturadas e com boas equipes, uma escola de ensino primário e uma de ensino secundário. Antes, ela tinha que andar duas horas a pé para levar e buscar o filho mais novo na escola, mas agora esse deslocamento leva cinco minutos.

O filho mais velho de He Ying, que ela teve que deixar aos cuidados da mãe quando migrou para trabalhar, frequenta hoje um curso técnico de manutenção de elevadores na cidade. “Existem 64 elevadores nesta comunidade”, explica He Ying. “Espero que, quando se formar, ele volte e trabalhe na nossa comunidade para servir as pessoas também.”

A superação da pobreza extrema na China é uma conquista de uma dimensão e em uma escala jamais vista na história. Em vez de ser um ponto final, é apenas uma fase na construção do socialismo, que precisa ser aprofundada e expandida. Para garantir a prosperidade no campo, o governo chinês implantou um programa de revitalização rural para consolidar e expandir os avanços no alívio da pobreza. Há muitos desafios pela frente para as mulheres camponesas, incluindo o combate a valores patriarcais e a promoção da igualdade de gênero, o aumento da participação de mulheres do campo na força de trabalho, a redução da exclusão digital e a educação técnica para as mulheres, além do aumento da oferta de serviços de cuidados de crianças e idosos.

O sucesso de um programa nacional da magnitude do PDRP não deve ser medido apenas por números abstratos, mas em comparação com a vida de camponesas pobres, como He Ying. O estudo teve o objetivo de apresentar algumas das experiências e histórias, tanto das pessoas que foram tiradas – e se tiraram – da pobreza quanto daquelas que ajudaram nesse processo. A construção de um mundo onde a pobreza está erradicada é essencial para a construção do socialismo. Ter condições de estudar, ter uma casa, se alimentar bem e desfrutar da cultura são anseios comuns às classes trabalhadoras e às mulheres pobres de todo o mundo. São aspectos que fazem parte do processo de se tornar humana.

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Tings Chak é pesquisadora e coordenadora do Departamento de Arte do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social e fundadora da Dongsheng News. Pesquisadora e autora principal de Servir ao povo: a erradicação da pobreza extrema na China. Mora e trabalha em Xangai.

Traduzido do inglês por Aline Scátola
Idioma original: inglês

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