Além das falsas promessas da COP30: A economia feminista como caminho para a justiça climática

13/11/2025 |

Por Natália Lobo, Diovana da Silva e Sophie Dowllar

Artigo de Natália Lobo, Diovana da Silva e Sophie Dowllar da MMM aponta soluções feministas baseadas na sustentabilidade da vida

Pela primeira vez na história, uma conferência das Nações Unidas sobre mudanças climáticas acontece no coração da Amazônia. A escolha de Belém como sede da COP30 traz simbolismo importante, mas está longe de resolver as contradições profundas que marcam essas conferências há três décadas. Enquanto nas salas de negociação discutem-se metas e mecanismos de mercado, nos territórios amazônicos e em todo o Sul Global, comunidades enfrentam os impactos diretos de um modelo de desenvolvimento que segue priorizando a acumulação sobre a sustentabilidade da vida. De uma perspectiva feminista, a crise do planeta é inseparável da crise do cuidado. Diante das negociações da COP30, o feminismo popular denuncia a destruição ecológica causada pelo capitalismo e dá visibilidade aos trabalhos de cuidado que sustentam a vida, em sua maioria feitos por mulheres.

As raízes da crise ambiental

A crise climática não é um fenômeno isolado, mas resultado direto de um modo de produção capitalista que trata a natureza e o trabalho de reprodução da vida, realizado majoritariamente por mulheres, como recursos inesgotáveis. Essa apropriação da natureza e do trabalho das mulheres constitui a base sobre a qual se ergue a acumulação capitalista. O sistema se expande e se renova também através de mecanismos como a colonização, o racismo, o acaparamento e a concentração de terras.

O que chamamos de conflito capital-vida expressa essa contradição estrutural: enquanto o capital e suas necessidades forem priorizados, a sustentabilidade da vida estará sempre em segundo plano.

A captura corporativa da governança climática

As conferências climáticas têm sido progressivamente capturadas pelo que se denomina “multistakeholderismo”, uma reconfiguração da governança global onde corporações transnacionais ocupam posições centrais nos processos decisórios, sem nenhuma base democrática para tal participação. Esse fenômeno limita o escopo das soluções possíveis àquelas compatíveis com a continuidade da acumulação capitalista, esvaziando a soberania dos Estados, particularmente do Sul Global.

Esse contexto se agrava pela crise mais ampla do multilateralismo e do sistema das Nações Unidas. A incapacidade do Conselho de Segurança de responder efetivamente a genocídios, como o que Israel provoca na Faixa de Gaza, revela um sistema que opera com duplos padrões, priorizando interesses geopolíticos das potências dominantes. Para os povos do Sul Global, essa crise de legitimidade das instituições multilaterais demanda não apenas reformas pontuais, mas transformações estruturais.

Desvelando as falsas soluções

A COP30 apresenta-se sob o lema da “implementação”, deslocando o foco da negociação de novos compromissos para a execução dos já assumidos. Esse enquadramento, embora aparentemente pragmático e necessário, tende a naturalizar acordos construídos sobre bases que reproduzem desigualdades estruturais.

O Fundo de Financiamento para Florestas Tropicais (TFFF), esperado como grande anúncio da COP30, exemplifica as contradições das falsas soluções. Ao monetizar serviços ecossistêmicos das florestas e estruturar-se como mecanismo bancário que exige retornos financeiros constantes, o TFFF transforma a conservação florestal em ativo financeiro. Países patrocinadores e investidores privados tornam-se credores esperando lucros, enquanto países florestais podem ver suas reservas convertidas em garantias de títulos, com pagamentos sujeitos a suspensão em crises financeiras.

A transição energética é outro tema central da COP30. No entanto, tal como proposta pelas corporações, mantém intactas as estruturas de propriedade e controle sobre sistemas energéticos, assim como as assimetrias na distribuição dos impactos. A extração intensificada de minerais críticos demandada por essa transição reproduz padrões coloniais históricos: os custos socioambientais são concentrados no Sul e os benefícios são apropriados pelo Norte.

Os mercados de carbono, que também têm centralidade na COP30, na prática, permitem a continuidade das emissões nos países industrializados, enquanto restringem o acesso de comunidades tradicionais aos seus territórios, violando direitos. Casos documentados revelam projetos implementados sem consulta adequada e com contratos abusivos, que limitam práticas agrícolas tradicionais fundamentais para os modos de vida e a soberania alimentar.

Economia feminista como horizonte de transformação

A economia feminista, como a compreendemos na Marcha Mundial das Mulheres, não é simplesmente mais um tema de debate, mas uma proposta de reorganização radical da vida social. Trata-se de colocar a sustentabilidade da vida, e não a acumulação de capital, no centro das decisões econômicas e políticas.

Essa perspectiva implica visibilizar e socializar o trabalho de cuidado, atualmente atribuído, de forma naturalizada, às mulheres. Implica reconhecer os limites biofísicos do planeta como condições inegociáveis. E implica compreender que as mulheres, especialmente camponesas, indígenas, de povos e comunidades tradicionais e das periferias urbanas, enfrentam de forma desproporcional os impactos da degradação ambiental: são elas que caminham distâncias maiores quando fontes de água são contaminadas, que garantem a alimentação da família mesmo com o avanço do agronegócio sobre os territórios, que reorganizam comunidades após eventos climáticos extremos.

A construção da Cúpula dos Povos

Frente à COP oficial, movimentos sociais e populares constroem a Cúpula dos Povos como espaço autônomo de articulação e de lutas. Organizada em torno de seis eixos de convergência, a Cúpula sintetiza agendas que os movimentos já constroem cotidianamente nos territórios.

Eixo I. Territórios e maretórios vivos, soberania popular e alimentar: defende a proteção dos territórios e direitos dos povos das águas, florestas e campos, exigindo demarcação de terras indígenas e titulação de comunidades tradicionais. Propõe a Reforma Agrária Popular e a construção de territórios agroecológicos para garantir soberania alimentar, além do reconhecimento da Natureza como sujeito de direitos e valorização dos saberes ancestrais.

Eixo II. Reparação histórica, combate ao racismo ambiental, às falsas soluções e ao poder corporativo: confronta grandes projetos do agronegócio e mineração, rejeitando falsas soluções climáticas baseadas na financeirização da natureza. Demanda cancelamento da dívida dos países do Sul, pagamento da dívida ecológica do Norte, responsabilização de corporações por crimes ambientais e políticas de reparação para os povos.

Eixo III. Transição justa, popular e inclusiva: defende a inclusão de todos os trabalhadores na formulação da agenda de lutas da transição justa. Pauta o papel das mulheres no cuidado com os territórios e a necessidade de centrar a reprodução da vida nas nossas propostas. Propõe democracia energética descentralizada, transição agroecológica e fortalecimento das economias territoriais populares, garantindo direitos trabalhistas e combatendo a precarização.

Eixo IV. Contra as opressões, pela democracia e pelo internacionalismo dos povos: fortalece o internacionalismo popular, construindo mobilização pela paz e justiça climática, combate à extrema direita, aos acordos de livre comércio e criminalização de migrantes, promovendo reparação aos povos mais afetados e poder popular ao redor do mundo.

Eixo V. Cidades justas e periferias urbanas vivas: desenvolve políticas urbanas de enfrentamento à crise climática nas periferias, combatendo racismo ambiental. Propõe planejamento urbano justo, reciclagem de imóveis para moradia popular, democratização do saneamento e energia, expansão da cobertura vegetal e trabalho decente nas cidades.

Eixo VI. Feminismo popular e resistências das mulheres nos territórios: construção do feminismo popular, antirracista, anticolonial e em defesa das diversidades sexuais e de gênero. Organização de resistência frente ao avanço do militarismo e da dominação colonial sobre as mulheres que vivem nos territórios ocupados, sob apartheid e nas guerras. Fortalecer a construção da economia feminista para fazer frente às economias neoliberais.

Construindo convergências populares para além da COP30

A Marcha Global pelo Clima, no dia 15 de novembro, materializará a presença dos movimentos nas ruas, visibilizando as nossas propostas e denunciando as falsas soluções propostas no espaço oficial da COP. O contexto em que vivemos exige fortalecer a perspectiva internacionalista e antimilitarista nas manifestações, particularmente diante do aprofundamento de conflitos e genocídios ao redor do mundo e da militarização crescente da questão climática, que serve para garantir acesso corporativo a minerais estratégicos e reprimir resistências territoriais.

O que nós, feministas, queremos é visibilizar a solidariedade internacionalista que já é prática no interior da nossa organização. Queremos mostrar como as mulheres ao redor do mundo não somente apontam soluções, mas a praticam no dia a dia, formando a força que mantém a vida em um mundo que sofre com as guerras, a pobreza e com os eventos climáticos extremos.

Com a expansão de bases militares, acordos de cooperação em segurança e operações conjuntas sob o pretexto de combate ao narcotráfico e ao terrorismo, os Estados Unidos intensificam sua presença militar na América Latina, perpetuando uma lógica de controle geopolítico que ameaça a soberania dos povos, criminaliza movimentos sociais e legitima intervenções que historicamente serviram aos interesses corporativos na região.

A COP30 poderá, na melhor das hipóteses, produzir avanços incrementais em suas negociações oficiais. A transformação necessária para enfrentar efetivamente a crise climática dependerá da capacidade dos movimentos de fortalecer suas organizações, ampliar articulações e construir poder popular capaz de impor mudanças estruturais. Nos nossos territórios, já construímos desde hoje, e sempre, as nossas alternativas ao modelo dominante.

Natália Lobo, Diovana da Silva e Sophie Dowllar são militantes da Marcha Mundial das Mulheres no Brasil e no Quênia.

Edição por Tica Moreno e Bianca Pessoa
Revisão por Helena Zelic

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