Para a Via Campesina, o dia 10 de setembro é uma data de luta contra o livre-comércio. As importações de alimentos e a introdução da agricultura nos acordos de livre-comércio têm um impacto direto na vida de camponesas e camponeses, destruindo as condições que sustentam a produção e a subsistência camponesa, ao mesmo tempo em que beneficiam grandes corporações transnacionais do setor.
Para marcar a data, conversamos com Morgan Ody, integrante da Coordenação Europeia da Via Campesina que, em 2021, se tornou coordenadora geral da Via Campesina (LVC), quando a sede do Secretariado Operacional Internacional da organização passou a ser na França. Na entrevista, Morgan falou sobre os avanços conquistados pela LVC em seus 30 anos de existência, a luta contra a Organização Mundial do Comércio e os prejuízos causados pela OMC à soberania dos países, além das estratégias para construir a soberania alimentar ao redor do mundo.
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Morgan, você pode nos contar como se envolveu com a LVC e o trabalho que vocês vêm desenvolvendo até aqui?
Eu sou agricultora e cultivo hortaliças. Atuo na Confederação Camponesa [Confédération Paysanne – CP] aqui na França há mais de dez anos, principalmente na luta relacionada à questão do acesso à terra. Meu pai também era pequeno agricultor e membro da CP, então eu transito por ela desde a infância. Há mais de dois anos, participo do Comitê da Coordenação Europeia da Via Campesina [ECVC], e faz um ano que passei a fazer parte da Coordenação Geral da LVC. É uma responsabilidade imensa, mas não é uma responsabilidade que carrego sozinha. Alguém tem que ocupar essa cadeira, mas a responsabilidade política pela LVC está no Comitê de Coordenação Internacional. Somos 22 pessoas de todo o mundo, e é nesse espaço que tomamos decisões. A Coordenação Geral também é coletiva no sentido de que agora a região europeia está com essa responsabilidade, então há muitas trocas, tanto com lideranças de outras regiões quanto com outras pessoas das organizações.
A questão é fazermos o melhor possível, e estou convencida de que o único caminho para o futuro está na construção de uma sociedade com soberania alimentar, com uma distribuição justa da terra. Uma transformação profunda na forma como produzimos e compartilhamos o que produzimos, de modo que as pessoas possam ter uma vida digna. Diante de imensos desafios, como biodiversidade, alimentação, crise climática, guerras e conflitos, eu acredito muito que aquilo pelo que lutamos representa uma pequena luz.
Este ano marcou a celebração de 30 anos da LVC, uma organização focada na defesa dos direitos e das formas de vida de camponesas e camponeses de todo o mundo. O que significa essa conquista e quais contribuições para a transformação social foram feitas pela LVC desde seu início?
Foi na criação da LVC a primeira vez em que os movimentos camponeses puderam se reunir no nível internacional. Então a simples existência dela já foi uma imensa conquista. As camponesas e os camponeses trabalham há 12 mil anos, mas a construção de um movimento como esse exige muito trabalho, porque, no geral, somos pessoas muito humildes. Em muitos países, as pessoas sequer são reconhecidas como camponesas.
Historicamente, os movimentos sociais modernos foram construídos com operários da indústria. No século 19, o internacionalismo foi construído com o proletariado, mas não com o campesinato. Da classe burguesa à esquerda, a esperança de um bom futuro estava na classe trabalhadora, mas excluía-se muito o campesinato. Atualmente e há pelo menos 40 anos, vivemos uma crise dessa ideia de modernidade, sobretudo por causa da crise ambiental. A ideia de que a industrialização pudesse sempre produzir e consumir mais e nos libertar do trabalho já não está funcionando. Nós rompemos nossa relação com a natureza, e é aí que entra a LVC. Ela reúne pessoas de comunidades indígenas e organizações de pequenas e pequenos agricultores. Reúne uma esquerda bastante tradicional com movimentos indígenas, rurais, de mulheres, e tenta construir algo novo com justiça social. Isso é revolucionário por si só, mas também por trazer uma compreensão sobre qual deveria ser nossa relação com a natureza. É diferente da ideologia da modernidade que foi construída no início do século 20.
Naturalmente, não foi que alguém pensou na ideologia da LVC uma vez e pronto. A forma como fazemos isso – uma forma camponesa e feminista –, nós definimos o que somos na ação. Podemos nos adaptar e estamos mudando aos poucos. Tentamos acolher o que acontece ao nosso redor, não é uma coisa rígida. É muito aberta, não apenas do ponto de vista intelectual, mas também do emocional, com nossos sentimentos.
E dentro da organização, como a LVC está organizando as lutas pelo campesinato? Como lida com as diferenças entre Norte e Sul e com a exploração dentro da Europa?
São 31 organizações que integram a ECVC. É uma região extremamente diversa em termos de línguas – acho que, dentro dessas organizações, as pessoas falam mais de 15 línguas –, então precisamos de um esforço imenso de tradução e interpretação. Mas também há uma diversidade de situações. Talvez vendo de fora, a Europa seja só a Europa Ocidental, mas ela é mais do que isso. Também há países bastante pobres, sobretudo do leste e sul da região.
A outra especificidade é a União Europeia. Dentre nossas organizações, apenas metade inclui países que são membros da UE. Entre nossos membros, temos organizações da Turquia, da Geórgia, da Suíça, do Reino Unido, e esses países não são membros da UE. Ainda assim, a UE tem um papel importantíssimo na formulação de políticas agrícolas na Europa, o que significa que essas políticas não são decididas no nível nacional desses países, mas no nível europeu. Então precisamos de uma articulação muito forte no nível europeu para monitorar e tentar fazer ouvir a voz de camponesas/es e pequenas/os agricultoras/es nos espaços onde as decisões são tomadas.
Quanto à relação com o Sul, é uma questão complexa, no sentido de que a LVC foi construída em uma coisa que não se baseava nas relações Norte-Sul. Ela foi construída com base no fato de que, estejam onde estiver, as pessoas camponesas enfrentam os mesmos problemas: o poder das corporações, o roubo de terras, o fato de que os preços pagos a camponeses e camponesas não cobrem os custos da produção agrícola, a falta de renda decente para para pequenas/os agricultoras/es e trabalhadoras/es agrícolas, tudo isso muito ligado à globalização… Então, ficou muito evidente desde o primeiro encontro da LVC, em 1992, em Manágua, que os interesses das pessoas camponesas da América Latina, da Ásia, da África e do Norte eram os mesmos. A agroindústria quer nos dividir. Quer exportar e se apropriar de recursos do Sul. Mas não é isso que somos e não temos nenhuma solidariedade para com ela.
É importante dizer que as organizações camponesas da Europa não estão na LVC em solidariedade com o Sul. Elas estão nesse movimento porque compartilham dos mesmos interesses e para defenderem, juntas, os interesses das pessoas camponesas, pequenas agricultoras e trabalhadoras agrícolas. Trata-se de se colocarem juntas com as pessoas que enfrentam os mesmos problemas. Dito isso, precisamos reconhecer que a economia e a política global se organizam com base na dominação, no imperialismo e no neocolonialismo. Por esse motivo, trabalhadoras/es e pequenas/os agricultoras/es do Norte estão, na maioria das vezes, em condições melhores que aquelas do Sul, por questões relacionadas à moeda, por exemplo. Uma hora de trabalho nos países do Norte pode pagar dez horas de trabalho nos países do Sul. Nós consideramos essa realidade.
O dia 10 de setembro marca o dia das lutas da LVC contra os acordos de livre-comércio. A LVC denuncia a atuação da OMC e sua estratégia atual de firmar novos acordos em benefício dos interesses corporativos, enquanto o mundo todo passa por uma crise econômica com o aumento da fome nos países do Sul global. Qual é a responsabilidade do poder corportativo no aumento da fome? E qual é a estratégia da Via Campesina para enfrentar o livre-comércio nos territórios?
As corporações utilizam a OMC e seus aliados, que estão muitas vezes em países europeus, além dos EUA, do Canadá e da Austrália, mas também grandes exportadores como o Brasil, para tentar aumentar seu poder no sistema alimentar. Por exemplo, em geral, 85% dos grãos são consumidos no mesmo país onde são produzidos. Apenas 15% é comercializado no âmbito internacional. Esses comércios globais são controlados quase na totalidade por grandes corporações, mas elas não controlam o que fica no nível nacional. As comunidades, as pessoas, têm um controle muito melhor do que é produzido e vendido localmente. A estratégia dessas corporações é aumentar a porcentagem de alimentos comercializados internacionalmente. Para isso, obrigam os países a terem o que chamam de “acesso ao mercado” para seus produtos. Isso significa que os países participantes precisam importar parte dos principais produtos básicos.
Por exemplo, os japoneses têm exigências muito específicas com relação ao arroz. Eles querem o arroz deles, que é diferente daquele produzido em outros países. Eles não comem arroz vindo de fora, mas mesmo assim o país precisa importar 10% do seu arroz. Não faz sentido, mas é obrigatório. Isso prejudica a economia da pequena agricultura, porque ela precisa competir com grandes empresas que importam alimentos muito mais baratos do que se pode produzir em pequena escala.
Nós entendemos que comida é política, então queremos poder discutir essas questões e decidir sobre elas. Isso não significa que somos contra todo comércio internacional. Ficamos felizes de poder comer coisas que vêm de fora, mas isso precisa ser organizado de uma forma que não prejudique os países e a produção em pequena escala. Então o que queremos é que a OMC saia da agricultura e da produção de alimentos, e queremos outro marco baseado na soberania alimentar.
A LVC exige o desmantelamento da OMC. O que a organização quer colocar no lugar dela? Como reorganizar a economia, colocando a vida e a soberania alimentar no centro?
Primeiro, nós queremos desmantelar a OMC para poder ter políticas nacionais fortes para proteger e apoiar a pequena agricultura e a produção camponesa. Em muitos países, o governo desmantelou completamente suas políticas agrícolas. Precisamos de políticas nacionais fortes para controlar o mercado e garantir que os preços pagos a camponesas e camponeses por seus produtos agrícolas cubram o custo da produção, para garantir uma receita decente. Na Índia, por exemplo, há um modelo muito inspirador de regulação do mercado, com estoques públicos em cada município, além de um sistema de preços como apoio mínimo e distribuição de alimentos para pessoas marginalizadas. Esse é o tipo de política que precisamos em todos os países.
Não é o que acontece hoje. Recebemos muito menos, e o preço dos alimentos para as pessoas que vão consumir depende completamente da especulação. O preço já não está de modo algum relacionado ao custo da produção. No sistema liberal, se você tem, de um lado, a tensão com o que vai para o mercado e, de outro, nenhuma regulação, esse é um terreno rico para a especulação. Nós queremos que os preços estejam ligados ao custo da produção. Queremos políticas que deem apoio às populações mais pobres da sociedade e permitam que elas tenham acesso aos alimentos bons e saudáveis que nós produzimos. A maioria dessas políticas é proibida pela OMC. Quando há subsídios agrícolas, eles são destinados apenas para grandes produtores.
Por outro lado, precisamos também de regras para organizar o comércio internacional e as trocas de alimentos e na agricultura. Para isso, precisamos de uma instituição global, mas não pode ser a OMC, porque ela está configurada para os países ricos e as grandes corporações. Precisamos pensar onde esse novo marco pode estar. Pode estar na FAO [Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura] ou na UNCTAD [Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento]. E precisamos nos debruçar sobre as regras que podem funcionar para todo mundo. A maioria dos países quer e precisa de algum comércio internacional. Por exemplo, Cuba está sofrendo por causa do bloqueio que exclui o país do comércio internacional. Essa exclusão dificulta muito a compra de maquinário e suprimentos médicos, só para começo de conversa. E os países precisam disso. Temos muito trabalho a fazer para construir um sistema comercial realmente justo e baseado na soberania alimentar.
Com a situação da imensa crise que temos hoje, o comércio internacional está muito tumultuado e muitos países e governos veem isso e precisam garantir condições estáveis para a produção de alimentos, só para estabilizar a situação. Precisamos trabalhar com os governos de Cuba, eu espero que com o novo governo do Brasil, com a Indonésia, com alguns países da UE que não são exportadores agrícolas. Precisamos descobrir com quais países podemos criar uma aliança para esse novo marco e trabalhar junto de movimentos sociais.