10 de setembro é um dia de luta da Via Campesina contra o livre-comércio. Essa data homenageia a coragem militante de um ato político extremo, quando o militante sul-coreano Lee Kyung Hae tirou a própria vida durante uma mobilização contra a Organização Mundial do Comércio (OMC) em Cancún, México, em 2003. Lee era um camponês que, como muitos, foi profundamente afetado pelas políticas comerciais de seu país, a Coreia do Sul. A importação de alimentos e a introdução da agricultura nos acordos de livre-comércio afeta diretamente a vida dos camponeses, destruindo as condições de sustentar a produção camponesa e viver dela, enquanto beneficia as grandes empresas transnacionais do setor. Por isso, nesse 10 de setembro, a Via Campesina denuncia: o livre-comércio traz dívida, pobreza, fome e morte! A organização convoca todas e todos para a luta permanente contra o livre-comércio e a construção de um comércio solidário já.
Para conhecer as análises das mulheres camponesas sobre os impactos do livre-comércio, e os desafios atuais dessa luta, Capire entrevistou Geum-Soon Yoon, integrante da Associação das Mulheres Camponesas da Coreia e da Via Campesina. Yoon vive em Seongju, na Coreia do Sul, onde cultiva melão, verduras e feijão, e desde a década de 1980 dedica sua vida à organização das mulheres camponesas e à luta por paz e unificação na península coreana.
Yoon detalha os efeitos do livre-comércio na agricultura camponesa a partir da realidade coreana, e alertou para as armadilhas e perigos da nova geração de acordos, especialmente os tribunais de “solução de controvérsias entre investidor e Estado” (Investor-state dispute settlement – ISDS). Essa entrevista foi realizada em espanhol e coreano, o que só foi possível pela tradução de Jung Eun Lee.
A luta contra o livre-comércio tem sido estratégica para os movimentos sociais e principalmente para a Via Campesinaque inclusive construiu a proposta de soberania alimentar em contraposição ao modelo capitalista de livre-comércio para a agricultura. Poderíamos começar essa entrevista recuperando as razões pelas quais a Via Campesina luta contra os tratados de livre–comércio e a OMC?
Tomamos conhecimento da problematização dos tratados de livre-comércio (TLC) quando fizemos um acordo com o Chile no início de 2000. Sabíamos que isso traria muitos problemas para nossos camponeses e agricultores, mais do que para outros setores porque, no caso da Coreia do Sul, o objetivo era poder aumentar a exportação da produção industrial. Assim, os camponeses começaram a perceber o possível problema e, imediatamente, souberam que estava a caminho o acordo com os Estados Unidos, ainda mais perigoso para a vida e a produção dos camponeses coreanos.
A partir dos anos 2000 e do tratado com o Chile, o governo continuou a expandir os TLCs com outros países. Até o momento, temos mais de 50 tratados de livre-comércio, o que é muito se comparamos com outros países. Nesse contexto, estamos sofrendo muitos impactos em nossas vidas e em nosso trabalho. Em primeiro lugar, os preços dos produtos agrícolas não são independentes, pois dependem dos preços do exterior. Os preços dos produtos agrícolas caíram muito, o que nos obrigou a mudar nossas formas de produção. A Coreia do Sul é um território pequeno, e tinha que expandir a escala de produção para ter mais competitividade. Perdemos as sementes e as sementeiras. Então, todos os insumos e sementes já estão nas mãos de empresas estrangeiras. Diante dessa situação tão transformada, nós, as mulheres camponesas, tivemos que nos adaptar muito para sobreviver. A nossa soberania alimentar está em risco.
As mulheres e homens camponeses, por vezes, têm de ter um segundo ou terceiro emprego para poder se manter, o que põe em risco a vida rural. Muitos tiveram que abandonar o campo porque não podiam se manter. Como não há mais tantas pessoas no campo, ultimamente os proprietários agrícolas contratam trabalhadores estrangeiros, o que gera outro tipo de problema em termos de produção. Neste contexto de covid-19, como esses proprietários não puderam mais trazer estrangeiros para a produção agrícola, tiveram problemas de produção devido à dependência. São milhares de dificuldades que enfrentamos após todo esse processo.
Na Coreia do Sul, temos uma população muito baixa de mulheres no campo, porque as mulheres camponesas estão indo embora. Isso acontece porque o trabalho é duplamente difícil para elas, porque precisam trabalhar em casa e também na fazenda. Além disso, elas não têm o direito de opinar sobre questões domésticas e de trabalho devido à nossa cultura tradicional.
Quais são os impactos dos tratados de livre-comércio no contexto da covid-19?
Já tivemos muitos impactos do livre-comércio no campo na região, o que já transformara o modo de produção e o modo de vida das pessoas no campo. Mas depois da covid-19, há menos importações e menos influxo de mão de obra estrangeira. Então, de alguma forma, o preço de mercado ficou bastante estável porque os produtos do exterior não chegam de forma massiva. Ao mesmo tempo, há pouca possibilidade de ter mais mão de obra de outra origem. Gerou-se, então, um grande salto no preço de produção, porque o preço da mão de obra dobrou. Isso foi parte das dificuldades que sofremos neste ano e no ano passado. Observamos os resultados de uma produção muito ruim devido às mudanças climáticas. O livre-comércio permite a livre circulação de mercadorias e também a contratação de trabalhadores estrangeiros. Isso multiplica a demanda e o uso de energia de fontes fósseis, o que acaba impactando o nosso clima e o nosso meio ambiente com a emissão de gases do efeito estufa, que afetam o cultivo e a produção agrícola. É como um ciclo vicioso, que gera um problema que desencadeia outro.
O livre-comércio acelerou a competição, aumentou a distância entre ricos e pobres e intensificou a densidade da população urbana, o que também ajuda na disseminação do coronavírus. Isso, por sua vez, também aumenta o abismo social na sociedade sul-coreana, porque aqueles que têm dinheiro e condições econômicas podem se proteger.
E qual é o papel do Fundo Monetário Internacional (FMI) nessa crise?
O FMI impôs uma série de condições a diversos países ao oferecer resgate financeiro. Entre as condições exigidas estão a reorganização do sistema de supervisão financeira, o aumento das taxas estabelecidas pela política monetária e a abertura dos mercados financeiro, de capital e de câmbio em relação ao setor financeiro. A reorganização do sistema de supervisão financeira significa a privatização desse tipo de órgão. As instituições financeiras privadas reorganizadas pagam o serviço de supervisão em nome de certas contribuições. Nesse relacionamento, os órgãos de supervisão financeira vão gradualmente perdendo a natureza das organizações públicas cuja função é estritamente supervisionar as instituições financeiras.
O capital financeiro internacional está interessado na compra de grandes quantidades de ativos que desvalorizaram em meio à crise. Para isso, é necessário aumentar as taxas de juros, o que reduz o preço dos ativos e abre o mercado para facilitar a entrada de capital estrangeiro em diversos países. A covid-19 levou à liberação de muitos recursos e haverá muitos casos de falência se as taxas de juros subirem, enquanto os preços dos ativos inevitavelmente despencarão.
No início do problema social e econômico causado pela covid-19, o FMI recomendava que os governos adotassem o plano de apoio de forma seletiva. Em outras palavras, não é um fundo para todos, mas sim um no qual se seleciona a população vulnerável, a escolhe para financiá-la. Embora o governo sul-coreano não tenha feito isso em sua decisão inicial, muitas pessoas se perguntaram por que o FMI recomendaria isso aos países. Não é bom que o FMI tenha um único conjunto de diretrizes para todos os países, quando cada país tem contextos e condições diferentes, e se sente compelido a seguir essas recomendações. Isso afeta a vida de pessoas de países cujas realidades não condizem com as de países desenvolvidos como os Estados Unidos ou os países da Europa.
Particularmente no caso da Coreia do Sul, os jovens que não tinham recursos ou emprego recebiam a pensão do governo, mas, por desespero, também se endividavam investindo em bitcoins ou em ações. É um fenômeno bastante complexo essa forte tendência das aplicações financeiras nesse período em que as taxas de juros não eram altas. Se os Estados Unidos aumentam a taxa de juros, o governo sul-coreano também aumentará e, nos próximos anos, com taxas mais altas, os jovens continuarão endividados. No contexto de covid-19, os camponeses também tiveram que pedir muito dinheiro emprestado ao governo e ao banco. Com a taxa de juros subindo, eles vão se endividar ainda mais.
A Coreia do Sul e outros países asiáticos passaram por um período de crise econômica em 1997. Muitas pessoas experimentaram um aumento exponencial de suas dívidas devido às flutuações da taxa de câmbio. A Coreia do Sul, em particular, viveu um período de reestruturação muito forte porque, junto com o empréstimo do FMI, tomou-se medidas neoliberais. A sociedade ficou traumatizada com as dívidas. As políticas neoliberais permaneceram e ainda estão vigentes em nossa economia. Elas nos extraem todo o nosso trabalho, esforço e energia. Tendo vivido essa experiência, temo que o FMI aproveite essa catástrofe atual para interferir na política dos países e se assentar para sempre.
Um acordo recente é a Parceria Econômica Regional Abrangente(Regional Comprehensive Economic Partnership – RCEP), formada como um dos maiores acordos, ao mesmo tempo em que não inclui os Estados Unidos e a União Europeia. Há diferenças entre o RCEP e os acordos que envolvem os EUA e a UE? Que outros acordos estão sendo impostos na região asiática e quais são os desafios que apresentam para os movimentos sociais, sindicais e camponeses da região?
O RCEP é um acordo no qual participam dez países do sudeste asiático, mais a Coreia do Sul, China, Japão, Austrália e Nova Zelândia. Em novembro de 2012, 16 países deram início às negociações, mas foi em novembro de 2020 que conseguiram um acordo completo, sem a Índia, que abandonou a proposta. O RCEP não é um TLC comum, porque envolve países com diferentes condições econômicas, que acordaram que os níveis dos negócios serão graduais e parciais. Não será um livre-comércio por completo.
Esse é o maior bloco do mundo até agora, porque inclui 30% do PIB mundial. O comércio desses países corresponde a 28,7% do comércio mundial, e sua população, a quase 30% de todo o planeta. A China liderou esse bloco, e esse movimento foi acompanhado pela expansão dos bancos de investimento e desenvolvimento asiáticos, dos quais a China também é uma grande financiadora.
Enquanto a China impulsionava o RCEP, o Japão se sentiu ameaçado e, por isso, impulsionou um bloco chamado Acordo de Associação Transpacífico (Trans-PacificPartnership – TPP). Em seguida, os Estados Unidos assumiram a liderança das negociações do TPP devido à sua influência na região asiática pela aliança com o Japão. Essa é uma das disputas entre a China e os Estados Unidos na região. O projeto do TPP teve início durante o governo de Obama e depois foi abandonado por Trump devido à sua proposta mais nacionalista e protecionista.
Sem os Estados Unidos, em 2018 o Japão seguiu com as negociações e acabou assinando o Tratado Integral e Progressista de Associação Transpacífico (ComprehensiveandProgressiveAgreement for Trans-PacificPartnership – CPTPP), que não aceita nenhuma exceção – na agricultura, por exemplo, é preciso fazer tudo sem nenhum imposto sobre a importação. É bem diferente do RCEP, que busca uma abertura mais gradual, levando em conta a ampliação de empregos e os benefícios em cada país, e ressaltando a importância da regulação e do controle no sistema de comércio internacional. Ainda sobre o CPTPP, um tema muito preocupante para o povo coreano é o chamado tribunal de “solução de controvérsias investidor-Estado” [ISDS na sigla em inglês], que significa que os investidores podem, diretamente, processar os Estados que estão dentro do mesmo bloco.
No dia em que o CPTPP foi assinado, os Estados Unidos anunciaram uma estratégia chamada “Indo-Pacífico livre e aberto” (Freeand Open Indo-Pacific Strategy). Nesse comunicado se descreve a estratégia geral das relações diplomáticas e econômicas dos Estados Unidos e da Austrália com os países dessa região asiática. Eles falam sobre proteger os países de ataques cibernéticos, sobre restrições regionais para a aviação e segurança marítima, sobre possíveis ameaças da China. Muitos analisam que, através do RCEP, a China também mostra seu poder e liderança. Isso é parte do “soft power” que a China já vinha mostrando ao mundo e que é diferente das formas de negociação empregadas há décadas.
Apesar de todos os países terem sofrido a crise de 2008, a China manteve um crescimento bastante impressionante e sem estagnação. O prognóstico é que, até 2030, a China se torne a primeira economia do mundo em produção industrial, com avanços tecnológicos e militares. Para manter sua posição no mundo, os Estados Unidos continuam explorando diferentes possibilidades para ter mais alianças, enquanto a China faz o mesmo processo na região.
No povoado onde vivo, no sudeste da Coreia do Sul, os Estados Unidos implementaram em 2017 uma base de um sistema do exército chamado Terminal de Defesa em Área de Alta Altitude (Terminal High Altitude Area Defense – THAAD), com capacidade de derrubar mísseis de curto e médio alcance, para ter uma forma de controle contra a China. Digo isso para dar um panorama sobre esses movimentos militares na região. Muitas mulheres camponesas lutaram e lutam até hoje contra essa decisão e esse sistema militar.
As estratégias das corporações transnacionais para o livre-comércio se diversificaram, como vemos na sua exposição sobre a realidade da Ásia. Ao mesmo tempo, a captura corporativa das Nações Unidas tem avançado muito, como evidenciado na Cúpula dos Sistemas Alimentares. A partir da experiência na região, quais são as apostas políticas para deter o poder corporativo e o livre-comércio? Qual é o centro da ação política para este 10 de setembro?
Há 20 anos, o então presidente da Coreia do Sul, Roh Moo-hyun, disse algo muito significativo: que o poder parecia já ter caído nas mãos do mercado. Mas penso que precisamos de um poder que possa ganhar do mercado. Precisamos de um poder que não vacile diante das transnacionais. Esse poder tem que ser organizado e politizado, tem que ser consciente e ganhar a influência e a esfera política. Para isso, são necessárias alianças, formação e politização baseadas no poder popular. O mais importante é que as pessoas não sejam dependentes das empresas transnacionais. A agroecologia que estamos propondo é uma alternativa, porque com sua prática podemos construir uma forma de vida diferente e com mais autonomia.
Para o 10 de setembro, a Via Campesina colocará em ação sua campanha para priorizar a saúde e não o lucro. Nessa campanha, temos outras duas frases: que “o livre-comércio gera dívida, fome, pobreza e morte” e que “precisamos de um comércio solidário”. O comércio solidário que propomos é algo muito importante para nós.
Por último, gostaríamos de homenagear o valioso companheiro Lee Kyung Hae. Você podria trazer algumas palavras em sua memória?
O que aconteceu em 2003 em Cancún é uma memória histórica do movimento camponês. Nosso companheiro Lee Kyung Hae se sacrificou com honra. É uma história muito triste para nós, mas, ao mesmo tempo, acredito que seu ato, sua decisão e sacrifício geraram muita consciência, valentia e esperança para as camponesas e camponeses do mundo. A partir desse ocorrido, as e os camponeses puderam se levantar com mais coragem para lutar contra as políticas neoliberais. Lee Kyung Hae nos deu mais força para seguir lutando e resistindo. O que realmente queremos é anunciar o fim deste sistema neoliberal fictício e insustentável. Queremos buscar uma alternativa, um mundo em que todos os seres possam viver mais saudáveis e felizes. Queremos um mundo novo e vamos seguir lutando como forma de lembrar do nosso companheiro.