O feminismo constrói pontes para a integração dos povos

13/02/2024 |

Por Alejandra Angriman

Alejandra Angriman fala sobre o papel do feminismo nos processos de integração regional a partir dos povos das Américas

A América Latina e o Caribe são um território de disputa material e simbólica. O avanço do poder e da ganância do império nas últimas décadas é impressionante, e tem se dado de forma acelerada e implacável. Trata-se de uma expansão da violência e da espoliação sem precedentes. Isso se reflete no nível institucional, econômico e produtivo, por meio de políticas neoliberais implementadas pelos representantes corporativos do poder concentrado, que colocam em prática estratégias para destruir as condições de vida dos nossos povos. 

Essa realidade implica, para nós, a construção de condições de organização popular para disputar todos os espaços em que se dá a luta pela superação das desigualdades e assimetrias das nossas sociedades. Precisamos travar uma luta emancipatória que permita definir outro modo de reprodução da vida em comum. Nesse sentido, as contribuições do feminismo — e, particularmente, da Marcha Mundial das Mulheres — e todos os debates realizados na Jornada Continental pela Democracia e contra o Neoliberalismo foram muito importantes para nossa organização.

A experiência da formação dos nossos países mostrou que a administração dos Estados não é suficiente, porque a matriz colonial e neoliberal se infiltrou profundamente nas estruturas e limitou o desenvolvimento e a transformação que nossas sociedades precisam. Nesse sentido, é fundamental para a classe trabalhadora reivindicar a luta pelo poder e a representação política dos povos. Isso precisa nos unir, não necessariamente com um partido político, mas com um projeto político emancipatório.

Os feminismos latino-americanos têm uma virtude: eles criaram uma identidade política capaz de colocar no cenário regional o questionamento radical dos sistemas de conhecimento e de organização da sociedade. Sobretudo a partir da década de 1990, a construção da cidadania e a necessidade de aprofundamento da democracia nos países de nossa região passaram a estar em pauta, e a relação entre movimentos e Estados, bem como o desenvolvimento de estratégias para influenciar esses processos democráticos, passaram a estar no centro do debate. O feminismo popular desenvolvido no nosso continente deu contribuições fundamentais para expor essas tensões.

Hoje, com relação à agenda, surge uma questão central: que lugar deve ser dado aos esforços para institucionalizar a política de direitos em contextos de aprofundamento da exclusão e das desigualdades sociais? As conquistas que tivemos nos últimos anos foram importantes, mas parecem muito pequenas diante dos desafios de incorporar a igualdade e os direitos ao debate democrático. O foco da construção democrática deve ser a criação de uma vida que valha a pena ser vivida. A luta pelos direitos das mulheres exige o desenvolvimento de uma visão estratégica de futuro, na qual as agendas feministas não se sustentem apenas na defesa discursiva e na reivindicação de um espaço próprio, mas na articulação das demandas democráticas da sociedade. Que sejam garantidos espaços de contestação e alternativas em termos de pensamento, mas também — como costumava dizer Nalu Faria — em termos de ação. 

Que sejamos capazes de elaborar não só o possível, mas também o que é desejável.

Alejandra Angriman

Na Confederação Sindical das Américas (CSA) e na minha própria organização, a Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras da Argentina – Autônoma (CTA-Autônoma), temos uma agenda fortemente ligada à luta do movimento feminista popular. Fazemos uma reflexão sobre os debates que estão sendo construídos em nosso continente. Não falamos apenas de um feminismo popular, falamos também das contribuições dos feminismos decoloniais em nosso continente, que nos permitem abordar diferentes aspectos da integração a partir de uma perspectiva diferente.

O pensamento decolonial aprofunda nosso feminismo, nossas perspectivas sobre o conflito Norte-Sul, a dimensão global e os vínculos locais, para denunciar a colonialidade que persiste em nossos territórios e corpos. Ele nos permite analisar questões que vão desde a geopolítica até a dependência econômica e cultural e a injustiça social em toda a região. Também nos permite buscar respostas através da resistência, que está vinculada à tentativa de descolonizar o conhecimento e o poder. Esse feminismo decolonial que surgiu na década de 1980 como uma revisão crítica dos feminismos hegemônicos precisa ser recuperado.

O feminismo hegemônico continua presente na nossa região e estabelece uma visão única e universal, com base nas preocupações das mulheres brancas, ocidentais, europeias ou norte-americanas. É importante voltar a falar dos feminismos negros, que foram os primeiros a se posicionar em relação a esses feminismos ocidentais. Devemos retornar à tradição do pensamento crítico latino-americano, incluindo a crítica à cooptação internacional do feminismo. Parte do feminismo que surgiu na década de 1990 foi cooptado por organizações não governamentais e organismos financeiros internacionais que tentam nos inserir em uma agenda ligada à defesa dos direitos individuais, negando ou colocando em segundo plano os direitos coletivos.

Precisamos revalorizar o conhecimento situado e horizontal, sem pretensões de universalismo ou verdades incontestáveis, para obtermos respostas mais acertadas e mais alinhadas com os problemas de nossa região. Nosso feminismo popular, em suas diferentes vertentes, teve a capacidade de repensar o conceito de poder e as lutas pelo poder, enfatizando as diferentes formas de opressão. A partir da promoção da horizontalidade das relações, devemos continuar contribuindo para a crítica da ordem internacional, desarticulando as relações estruturadas em torno da masculinidade.

Dessa forma, podemos continuar refletindo e fazendo novas perguntas: quais são os papéis sociais construídos e atribuídos a homens e mulheres nos processos de integração regional? Que outras desigualdades estão interligadas às desigualdades de gênero? Como essas relações se cristalizam na construção da institucionalidade? Como os processos de integração têm impacto sobre nossos afetos, emoções e corpos? Onde e como os espaços de mulheres e diversidades são incluídos nesses processos? Todas essas perguntas também têm a ver com as nossas contribuições já feitas, e com aquelas que devemos continuar fazendo para a construção de uma agenda que leve em conta as questões das mulheres.

Os desafios não têm a ver apenas com a visibilidade dessas múltiplas desigualdades, subalternidades e hierarquias que atravessam todos os sujeitos e sujeitas que estão nesses espaços políticos. Analisar a integração regional a partir de uma perspectiva feminista popular e decolonial não significa ater-se a uma perspectiva de vivência, e sim fazer um esforço indispensável para formular novas perguntas que questionem esses processos de integração. Temos feito muito, mas ainda temos muito a fazer. O que ficou em segundo plano? Precisamos articular o conjunto de conhecimentos que construímos, bem como as lutas sociais que permanecem segmentadas pela lógica patriarcal. A partir do feminismo, podemos criar vasos comunicantes para analisar e pensar em estratégias regionais desafiadoras e articuladas com a mobilização social atual. O feminismo constrói pontes e preenche lacunas.

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Alejandra Angriman é militante da Marcha Mundial das Mulheres na Argentina, integrante da Central dos Trabalhadores da Argentina – Autônoma (CTA-Autônoma) e atualmente é presidenta do Comitê de Mulheres da Confederação Sindical das Américas (CSA). Este texto é uma edição de sua exposição no webinário “Feminismo e integração regional”, realizado pela MMM Américas em 30 de novembro de 2023.

Traduzido do espanhol por Luiza Mançano

Edição por Helena Zelic

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