Jaron Browne:“Não precisamos de nenhuma prisão”

19/07/2024 |

Por Capire e Radio Mundo Real

Leia e ouça a entrevista realizada no programa Fúria Feminista sobre o abolicionismo carcerário

pacific press

Jaron Browne é Diretor de Organização da Aliança Popular para a Justiça Global [Grassroots Global Justice Alliance-GGJ] nos Estados Unidos. Durante sua participação no encontro “Tecendo nossas propostas emancipatórias”, ocorrido em maio de 2024 na Guatemala, Jaron concedeu uma entrevista focada na pauta do abolicionismo prisional, luta proveniente de organizações antirracistas. Jaron é uma pessoa trans, e também chamou a atenção para a importância do feminismo e da organização das pessoas LGBT+ na luta abolicionista.

A entrevista baseia-se principalmente nas experiências e acúmulos da luta antiprisional nos Estados Unidos, mas o problema das prisões está presente em todas as Américas e no mundo como forma de controle e manutenção da violência capitalista, racista e patriarcal. Em El Salvador, por exemplo, o governo de direita de Nayib Bukele impôs um regime de exceção e construiu a maior prisão das Américas, com capacidade para quase 50 mil pessoas. Em dois anos, entre 2022 e 2024, 78 mil pessoas foram presas e as organizações de direitos humanos relatam 244 pessoas mortas sob custódia do Estado e milhares de casos de violações dos direitos humanos.

Esta entrevista foi publicada em áudio na Rádio Mundo Real, integrando o episódio 16 do programa Fúria Feminista, produzido pela RMR e pela Marcha Mundial das Mulheres no Brasil.

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O que é o abolicionismo prisional?

Para nós, a importância do conceito de abolicionismo é permitir entender que o sistema de encarceramento e punição tem suas raízes na história da escravidão. Não havia prisões na América do Norte antes da escravidão. O que o movimento feminista abolicionista está propondo é mostrar que não é necessária, por motivo algum, essa forma de castração. É muito prejudicial para as comunidades, especificamente para as comunidades afrodescendentes e indígenas. É um sistema violento, é um sistema racista. Então, o abolicionismo é uma alternativa de segurança e justiça para todos.

A prisão não é uma solução para os problemas de segurança e violência porque, na verdade, sustenta e reproduz a violência. Que estratégias existem dentro do abolicionismo para frear o encarceramento? Como é a proposta de desinvestimento?

Estamos falando de desinvestimento e de fechar essas prisões. Desinvestimento da polícia, inclusive a de migração, e das demais formas violentas de controlar as pessoas. Em vez disso, existem muitas outras formas de introduzir segurança e justiça e enfrentar conflitos. É importante mencionar que, na América do Norte, essa perspectiva vem dos movimentos feministas afrodescendentes. Nos Estados Unidos, agora, temos o maior número de pessoas encarceradas no mundo.

DESTAQUE: Temos mais de dois milhões de pessoas encarceradas nos Estados Unidos. A maioria delas são pessoas que nunca cometeram um ato violento. A maioria é vítima de um sistema capitalista e da pobreza. A maioria das pessoas encarceradas está lá por razões sociais e também por causa de um sistema de discriminação.

Por um tempo, isso foi a única coisa que existiu para as pessoas em crise, um ato violento que causa um grande impacto horrível por gerações. Por isso, surge a ideia de avançar com alternativas, com a visão de que realmente não precisamos de nenhuma prisão. Ponto.

O desfinanciamento é muito importante. Se olharmos para o grande custo de cada pessoa encarcerada – uma mulher, uma mãe, um homem, uma pessoa transgênero – podemos ver que são milhares de dólares por ano. É muito mais se imaginarmos esses dois milhões de pessoas presas nos Estados Unidos. O que é possível fazer com esses recursos? É possível melhorar o acesso dessas pessoas à saúde, à reabilitação, à educação, à habitação sustentável, coisas assim. Para mim, esse é o início dessa luta: com todo o dinheiro que estão usando para construir prisões, o que acontece se investirmos na comunidade, na educação e em bons serviços comunitários? Isso é possível e esta é a demanda que surgiu nas últimas duas décadas até hoje, nos Estados Unidos e em âmbito mundial.

As mulheres e as diversidades sexuais sofrem impactos e consequências específicas na prisão, incluindo a violência sexual por parte dos agentes penitenciários e da polícia. Você poderia trazer sua visão sobre esse assunto?

Há uma crise global de violência contra as mulheres. Mas, se pudermos olhar para as raízes dessa violência, como podemos garantir uma segurança verdadeira? Isso é parte do que precisamos. Não é que queiramos que aqueles que estão estuprando vão para um lugar onde sofram mais violência. Além disso, com o nosso sistema policial, muitas vezes as mulheres chamam a polícia em momentos de crise, mas a polícia vem com o seu olhar agressivo, o que também pode não ser seguro para a mulher.

Por isso estamos formando outras organizações, nas quais novidades virão. Como podemos nos organizar para ter uma resposta comunitária? Como podemos, muito antes de que a crise ocorra, investir em recursos para criar comunidades seguras? A comunidade mais segura não é aquela que tem mais polícia ou mais prisões, mas aquela que realmente tem mais recursos, com escolas, locais de saúde e cura, alimentos. Essas são as coisas que garantem uma comunidade e é possível sentir isso. Mas, quando vivemos em economias com muitas desigualdades, sentimos que precisamos de polícia, precisamos de prisões. É uma situação em que há muita violência e muito sofrimento, e isso está mudando. Estamos mudando.

Como essas mudanças estão ocorrendo? Como alterar os impactos do confinamento prisional nas famílias e comunidades?

As organizações são muito fortes. Quero citar a organização Coragem [Courage], que é membro da GGJ e é uma organização de jovens impactados pelo encarceramento. O seu lema é fechar as prisões juvenis e formar jovens líderes. Essa é a prática deles, com educação política. Esses jovens vêm da comunidade com muita liderança. O que posso observar nessas situações é que quando alguém é preso, toda a família é afetada. Eles tentam manter conexões, visitar a sua família, buscar a oportunidade de passar o aniversário juntos, mas é muito difícil. Além da visita, só receber ligações é difícil. É um dano para gerações inteiras. Muitos jovens falam da experiência de encarceramento de seus pais ou familiares. Para as mulheres, isso é especialmente difícil, e talvez seja parte da razão pela qual o movimento abolicionista vem do feminismo negro, com o pensamento de Angela Davis. Há muitas mulheres de afrodescendentes com essa visão de abolicionismo.

Quero também mencionar a situação muito importante das pessoas transgênero, porque as prisões são muito perigosas para elas. Há uma luta muito importante e organizações específicas para pessoas transgênero encarceradas. Uma delas é o Projeto de Justiça para Transgêneros, Gênero-Variantes e Intersexuais [TransgenderGender-Variant & Intersex JusticeTGIJP]. Uma importante líder dessa organização chamava-se Miss Major. Sua visão e compaixão eram muito fortes. Depois dela, muito mais mulheres estão falando sobre a criminalização que sofrem, dirigida especificamente às mulheres transgênero. Quando estão presas, elas sofrem muitos estupros e violência. Por isso, são fortes na sua ação e ativismo, com uma contribuição muito importante para o movimento abolicionista em geral.

Que tipo de justiça alternativa existe ao atual sistema de justiça punitiva?

A ideia de justiça restaurativa centra-se principalmente em accountability [responsabilização]. São processos centralizados nas experiências das pessoas impactadas, mas permitindo que tenhamos consciência da humanidade de todes. A pessoa responsável por prejudicar outra pessoa provavelmente também terá experiências de violência em sua vida, e talvez também tenha sido vítima. O processo de justiça restaurativa inclui muitas maneiras de trabalhar nisso a partir do desejo da pessoa afetada. Existem muitas organizações que praticam isso e muitas vezes as pessoas que participam desses processos vivenciam uma transformação incrível. Nenhum de nós está resumido ao ato mais feio que já fez na vida. É importante enfrentar esses atos e assumir a responsabilidade. Já ouvi de pessoas que foram vítimas que quando têm a oportunidade de participar de um processo assim com alguém, é muito mais completo do que a experiência de ter alguém encarcerado. É complexo, mas é um processo muito importante. Podemos aprender muito com as experiências que estão acontecendo em vários lugares. Existe nas escolas, nas comunidades. É um processo avançado em suas práticas e tem muito potencial.

Para compreender o conceito de justiça restaurativa, é importante definir o que é segurança. Como avançar nisso?

A beleza dessa ideia vem de Angela Davis, uma feminista afrodescendente muito importante nos Estados Unidos. Também podemos olhar, no movimento pela justiça, para líderes encarcerados como George Jackson. Agora, acho que a ideia está ligada a muitas organizações, como o movimento Vidas Negras Importam, entre outros movimentos de afrodescendentes nos Estados Unidos, como Defensores de Sonhos [Dream Defenders] e BYP100. O abolicionismo é uma ideia muito forte agora, foi também antes para os chicanos, presos políticos em Borinquen, Porto Rico. Depois de Vidas Negras Importam, podemos promover estas ideias abolicionistas a nível global. Falamos em desinvestir na polícia, num grande momento de consciência do povo, dizendo que realmente não queremos essa polícia que está matando os filhos afrodescendentes.

Estamos chegando ao fim da nossa conversa. Você gostaria de dizer algo mais sobre alternativas ao punitivismo carcerário?

De muitas maneiras, especialmente no Norte, estamos gastando bilhões, até mesmo trilhões de dólares, com violência, guerras, bombas, polícia e prisões. Temos uma economia capitalista que é uma economia da morte, uma economia da violência. Podemos ver o impacto dessa violência através das gerações. A consciência que vem agora do movimento feminista de base é mostrar que podemos promover uma economia da vida, uma economia do cuidado que valorize todas as pessoas.

Com isso, estamos avançando para uma visão de segurança que coloca muito mais esforço na cura, na reabilitação, nos recursos comunitários e nas oportunidades. Quando existem essas visões, incluindo a justiça restaurativa, quando investimos nessas opções, podemos olhar para possibilidades completamente diferentes. Existem exemplos disso no mundo todo. Só para citar um, a Islândia tem um dos maiores exemplos, com uma situação grave. Uma pessoa entrou armada e matou muita gente. Isso acontece muitas vezes nos Estados Unidos, no que chamamos de massshooting [disparos em massa]. Na Islândia, quando isso aconteceu, o governo progressista decidiu investir em muitas oportunidades, trabalho, centros de atividades para jovens, desde a infância. Foi uma mudança completa na situação de violência no país. Espero que possamos ter mais intercâmbios, porque em outras partes das Américas existem movimentos tratando disso. Nos nossos movimentos feministas, a ideia de liderança potencial de todas as comunidades impactadas é fundamental.

Entrevista conduzida por Valentina Machado (Radio Mundo Real)
Edição e redação da introdução por Helena Zelic
Tradução de Aline Lopes Murillo
Idioma original: espanhol

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