Este texto é uma parte do artigo Movimento feminista no Marrocos: trajetória e perspectivas, escrito por Khadija Ryadi para a publicação Islamofobia e Gênero, disponível em formato digital em espanhol, euskara e galego. O livro foi publicado pela SOS Racismo, federação de organizações autônomas que combatem o racismo e a xenofobia no Estado espanhol. A publicação fez parte de um processo de formação e reflexão entre mulheres muçulmanas e não-muçulmanas, e reúne artigos sobre as relações entre feminismo e antirracismo e os desafios para enfrentar a islamofobia.
O trecho abaixo traz um panorama do movimento feminista no Marrocos desde seu início até os dias de hoje, e propõe um balanço dos caminhos trilhados. Khadija Ryadi é militante da Marcha Mundial das Mulheres no Marrocos. Ex-presidente da Associação Marroquina de Direitos Humanos (Association Marocaine des Droits Humains – AMDH), recebeu o Prêmio de Direitos Humanos da ONU em 2013.
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As mulheres marroquinas se organizaram relativamente cedo para defender os direitos das mulheres, se levarmos em conta o despertar de homens e mulheres marroquinos para outras questões relacionadas à democracia e à modernidade. (…) Os primeiros passos do feminismo marroquino remontam à década de 1940, quando os partidos políticos mais importantes da época começaram a se interessar pela situação das mulheres. (…) As mulheres tinham se organizado em uma associação chamada Akhawat Assafa, que significa “as irmãs de pureza”. Já em 1944, elas apresentaram uma série de exigências para melhorar a situação das mulheres, que eram em sua maioria analfabetas e pobres. (…) A principal causa defendida por Akhawat Assafa foi o respeito às trabalhadoras domésticas, uma lei de família, que ainda não existia, para proteger as mulheres no contexto do casamento, e a conscientização sobre a violência contra as mulheres…
O Partido Comunista (PC) – que naquela época era na verdade uma fração do Partido Comunista Francês, já que o Marrocos ainda estava sob a colonização francesa – tinha criado a União das Mulheres do Marrocos. O PC estava mais preocupado com os problemas sociais e econômicos das mulheres. Seu trabalho foi sobretudo uma tentativa de aproximar as mulheres da classe trabalhadora através da associação Mulheres do Marrocos, que várias décadas depois se tornaria a Associação Democrática das Mulheres do Marrocos, que segue em atividade até hoje. Essa associação acabou se separando completamente do Partido Comunista, que foi proibido pelo regime marroquino após a independência, e que depois regressou à arena política, mas com um programa bem mais social-democrata.
(…) A primeira onda do feminismo marroquino aconteceu no período em que o Marrocos foi colonizado, de meados dos anos 1940 até o início dos anos 1960.
Quando essa experiência feminista vinculada aos partidos políticos estava se esgotando, e as mulheres sindicalistas assumiram o comando e deram ritmo à luta com a criação, em 1960, da primeira organização independente de mulheres. A União Progressista de Mulheres do Marrocos se originou dentro da primeira central sindical marroquina, a UMT, formada na clandestinidade cinco anos antes, para escapar da repressão das autoridades francesas que proibiam as marroquinas e marroquinos de criar seus próprios sindicatos. Assim, as mulheres estavam presentes em todos aqueles momentos difíceis, tanto na luta nacional pela libertação, quanto na luta social dentro dos sindicatos.
Depois dessas grandes experiências feministas políticas e sindicais, a luta das mulheres ficou adormecida por um longo tempo. A questão dos direitos das mulheres ficou relegada ao segundo plano enquanto a luta política dominava o cenário, especialmente após os primeiros confrontos entre a ala esquerda do movimento nacional e a monarquia sobre a natureza da governança que deveria ser colocada em prática após a independência. Este foi o início da repressão contra a oposição. (…) Foi só em meados da década de 1980 que começou a segunda geração do feminismo. Aquela década foi um momento de despertar para o movimento. As militantes dos partidos de esquerda, que eram essencialmente mulheres marxistas, decidiram tomar seu destino pelas próprias mãos. Assim começaram a criar organizações de mulheres fora dos partidos políticos.
Nascimento de um novo feminismo
Vários fatores contribuíram para o nascimento da nova geração do movimento de mulheres do Marrocos. As razões mais decisivas continuaram sendo as condições de vida das mulheres marroquinas afetadas pela marginalização e discriminadas em todos os níveis; também foi decisivo o fracasso da legislação marroquina, que tinha enormes falhas, minando os direitos das mulheres e sua dignidade, como o Código da Família da época, o Código Penal, ainda em vigor, e as leis de comércio, nacionalidade, o Código de Processo Civil… e outros que, majoritariamente, continuam sendo discriminatórios. (…)
Outros fatores, desta vez externos, contribuíram para o surgimento da segunda onda do feminismo marroquino. Os mais importantes foram a influência de pensadores e pensadoras reformistas de países árabes como a Tunísia e o Egito. (…) As feministas marroquinas também amplificaram as vozes das grandes escritoras orientais, como Nawal Saadawi Fahima Charafeddine, Farida Nakkache, etc. As publicações dessas escritoras ajudaram a criar a base intelectual do feminismo marroquino. O outro fator foi o impacto dos feminismos na Europa e no Ocidente em geral, especialmente depois do maio de 68 na França. O impacto desse feminismo foi muito profundo, pois marcou o feminismo marroquino e influenciou sua escolha universalista e seus métodos de trabalho.
A nova onda do feminismo passou por várias fases
O renascimento do movimento de mulheres no Marrocos foi marcado por seu aspecto intelectual. O estabelecimento dos fundamentos do atual feminismo marroquino passa pela cultura. Essa escolha é motivada pelo desejo de estabelecer a legitimidade das demandas das mulheres em uma sociedade profundamente misógina e em meio a um movimento político radical que ainda considerava o enfoque de gênero como um fator perturbador da luta de classes.
(…) As ativistas da causa das mulheres vieram principalmente de partidos políticos de esquerda. Esses partidos, dominados por sua ideologia de classe, não deram atenção suficiente às questões das mulheres, de modo que várias ativistas decidiram fazê-lo por si mesmas. Entre os marcos mais conhecidos dessa fase estão a criação do jornal 8 de Março, o primeiro jornal especializado em questões femininas publicado no Marrocos, no qual várias escritoras mulheres estavam envolvidas. O primeiro campo de batalha foi a lei da família.
Na segunda fase da construção do movimento de mulheres no Marrocos surgiram as primeiras estruturas de ação, que assumiram diversas formas. É o caso dos comitês de mulheres nas universidades, criados por ativistas da União Nacional dos Estudantes do Marrocos. (…) A segunda estrutura foram as associações de mulheres criadas nos centros de juventude. (…) Em cada canto do país, várias associações se concentraram na alfabetização das mulheres. Essa ação permitiu uma aproximação com as mulheres das classes mais desfavorecidas, criando-se inclusive associações dedicadas às mulheres trabalhadoras dentro dos sindicatos.
A criação da Associação Marroquina de Direitos Humanos, em 1979, a maior associação de direitos humanos do Marrocos, e o desenvolvimento da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) da ONU influenciaram os movimentos de mulheres e a escolha do referencial universal como base de suas lutas e reivindicações. Assim se constitui a terceira fase do movimento das mulheres marroquinas.
(…) A maioria das associações de mulheres que foram criadas naquele período e que hoje constituem o núcleo do que é comumente chamado de associações feministas marroquinas (…) considerava que a luta das mulheres deveria ser orientada, essencialmente, contra o patriarcado como a origem da opressão das mulheres. Uma minoria de mulheres ativistas permaneceu fiel à sua análise e preferiu atuar em sindicatos junto com as mulheres, vinculando a luta contra a violência de gênero a outras formas de opressão patriarcal.
A fase das reivindicações
O ano de 1993 foi especial na vida do movimento de mulheres marroquino. Pela primeira vez, as diferentes estruturas de mulheres, principalmente os setores femininos dos partidos de oposição, os comitês de mulheres dos sindicatos e algumas associações de direitos das mulheres recém-criadas, se reuniram em uma rede e anunciaram o início de uma luta pela mudança do Código do Estatuto Pessoal. Esta batalha ocupou um lugar importante na sociedade e foi, durante quatro meses, o centro das lutas no país. (…) O ano 2000 foi a segunda data importante na vida do movimento de mulheres no Marrocos. Foi o ano da primeira marcha de mulheres pelas mulheres. Reuniu dezenas de milhares de mulheres. Mas uma marcha paralela, organizada por partidos e movimentos conservadores, acabou sendo muito maior e mais impressionante. A batalha foi perdida novamente, mas as mulheres não se deram por vencidas.
Uma nova rede de mulheres chamada “Primavera da Igualdade” foi criada e, mais uma vez, lutou-se por um novo código da família. A batalha alcançou resultados parciais em 2004, quando a lei foi reformada e substituída por uma nova, muito mais justa, mas ainda longe de satisfazer as aspirações das mulheres à igualdade e à cidadania. Esta fase permitiu que o movimento de mulheres se estabelecesse na sociedade como um agente de luta e mudança. Também permitiu que ocupasse o centro do cenário político durante bastante tempo. (…)
Os erros do movimento de mulheres no Marrocos
(…) A preocupação com a independência das mulheres em relação aos partidos políticos tornou-se uma fobia à política, especialmente à esquerda, de onde surgiram as fundadoras do movimento.
Isso fez com que o movimento se tornasse pouco sensível ao conjunto de lutas dos movimentos pela mudança na sociedade. (…) Entretanto, a maioria dos movimentos sociais que surgiram e os protestos populares que eclodiram no país nos últimos quinze anos são, em sua maioria, movimentos de mulheres ou pelo menos caracterizados por uma participação significativa das mulheres. O feminismo marroquino acabou se distanciando das lutas das mulheres contra outras formas de opressão e discriminação, como a opressão de classe ou a discriminação contra as mulheres rurais.
Essa situação foi reforçada no início do novo milênio. De fato, após os ataques terroristas no Marrocos em 2003, o governo marroquino (…) se apresentou como defensor das liberdades e como única alternativa ao projeto islamista. As associações de mulheres são as mais sensíveis a esse discurso, já que as mulheres são o alvo preferido dos islamistas. Esse alinhamento tem afetado muito a imagem das associações de mulheres. Isso ficou muito mais visível em 2011 quando, na esteira dos protestos populares no chamado mundo árabe, manifestações de um movimento de juventude chamado Movimento 20 de Fevereiro irromperam em dezenas de cidades marroquinas. Centenas de milhares de manifestantes e mais de 100 organizações de esquerda e sindicatos e partidos políticos formaram uma rede de apoio ao movimento, com exceção das organizações de mulheres que se abstiveram. A razão apresentada por elas foi a de que os islamistas faziam parte das organizações que se manifestavam. O momento foi histórico e a posição do movimento de mulheres não foi bem recebida.
Perspectivas para um movimento de mulheres combativo
Não há expectativa de que as decisões tomadas pelas associações de mulheres mencionadas sejam revistas. (…) Essa renovação é esperada das organizações locais de mulheres. Embora sejam menos conhecidas, elas são mais numerosas e mais eficazes. Elas serão bem-sucedidas nessa missão porque estão mais comprometidas com o trabalho junto com os movimentos populares, devido à localização geográfica, ao pertencimento de classe ou às escolhas ideológicas. Elas estão em uma melhor posição para reinventar o feminismo marroquino. Para fazer feminismo no território, mas não como assistência. Uma nova forma de mobilização cidadã para mudar a situação das mulheres. Uma estratégia de ação com as mulheres e não para as mulheres. Um feminismo que encontrará seu lugar em harmonia com todas as lutas por uma sociedade mais igualitária. Porque o feminismo que luta contra o sexismo e a desigualdade de gênero não pode estar separado da luta contra outras formas de exploração e discriminação, e só terá êxito se souber incorporar-se às várias lutas pela emancipação de todo o povo marroquino.
(…) Houria Bouteldja defende um feminismo que não tenha que escolher entre ser antissexista e ser antirracista. Um feminismo que ela descreve como “paradoxal”, tendo que proteger as “mulheres árabes” do verdadeiro sexismo de sua comunidade (e também da sociedade europeia), e ao mesmo tempo defender “homens árabes” do racismo que os acusa de serem sexistas por natureza. Um feminismo que também pode ser defendido por feministas que não sofrem diretamente o racismo estrutural, mas que permanecem abertas à desconstrução de nossos conhecimentos e práticas (neo)coloniais; mulheres que não querem omitir a “raça”, nem exigir ou acreditar que as estratégias de resistência devem ser sempre e somente baseadas no gênero.