O cenário político, econômico, social e ambiental na Argentina é marcado por retrocessos permanentes quando falamos de direitos. A extrema direita está avançando de forma simultânea e acelerada em várias frentes, enfraquecendo nossa democracia e nosso tecido social. Nos primeiros meses do governo Milei, vimos como os impactos das políticas neoliberais impactam diretamente a vida do povo, especialmente nos setores populares, onde o Estado continua ausente e em constante afastamento. O presidente busca impor as regras do mercado em todas as relações sociais, tendo como principal ferramenta a destruição das estruturas do Estado. Tamanha é a reforma institucional que foi criado o Ministério da Desregulamentação e Transformação do Estado, um órgão cujo objetivo é “reduzir os gastos públicos”.
Ao mesmo tempo, poucos dias após a posse do governo, o Ministério da Segurança criou o chamado Protocolo de Manutenção da Ordem Pública, um mecanismo para criminalizar protestos e organizações sociais. O Protocolo criminaliza os bloqueios de ruas e estradas, o que significa que qualquer pessoa que participe de uma manifestação pode ser considerada criminosa. Vale ressaltar que o protocolo é pouco claro sobre o uso das forças de Segurança Nacional e não proíbe expressamente que elas usem armas de fogo.
Esse contexto levou à institucionalização de uma série de medidas que o governo vem implementando desde que entrou no poder: milhares de demissões no Estado; a redução dos ministérios nacionais (incluindo o Ministério do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável e o Ministério das Mulheres, Gênero e Diversidade); uma desvalorização abrupta da moeda nacional; retirada do subsídio ao transporte e aos serviços básicos, com grandes aumentos nas tarifas; desfinanciamento das universidades públicas e do sistema científico nacional; fechamento de meios de comunicação públicos; fechamento de órgãos nacionais voltados para a preservação dos direitos humanos, dos direitos da comunidade LGBTQI+ e dos povos indígenas; proibição do uso de conceitos como “mudança climática”, “agroecologia”, “gênero” e “biodiversidade” em espaços vinculados ao Estado; suspensão da entrega de alimentos a cozinhas comunitárias; fim da distribuição de medicamentos gratuitos para pacientes com câncer e doenças crônicas; cortes no orçamento do sistema de saúde pública; entre outras.
Essa combinação de medidas afeta diretamente a economia familiar, aumentando os índices de pobreza e indigência. Uma das últimas ações do governo foi vetar uma lei que propunha aumentar o valor mínimo da aposentadoria para mais de 8 milhões de pessoas aposentadas, que atualmente estão abaixo da linha da pobreza.
Esse retrocesso se deu através do projeto de lei “Bases e Pontos de Partida para a Liberdade dos Argentinos”, que foi aprovado pelo Congresso Nacional apesar das massivas mobilizações populares contra ele. Enquanto o projeto era debatido no parlamento, as Forças de Segurança Nacional reprimiram brutalmente os protestos. Segundo o Centro de Estudos Legais e Sociais (CELS), a repressão deixou 665 pessoas com diferentes tipos de ferimentos só na cidade de Buenos Aires. 47 profissionais da imprensa ficaram feridos e 80 pessoas foram presas arbitrariamente em protestos nas cidades de Córdoba, Rosário e em Buenos Aires. A última delas foi libertada após três meses em uma prisão de segurança máxima sob a acusação de “terrorismo” e “tentativa de golpe de Estado”.
Dentro dessa enorme lei de reforma do Estado está o Regime de Incentivo a Grandes Investimentos (RIGI). Com essa nova estrutura, busca-se estimular os investimentos em mineração, petróleo, gás e agricultura durante 30 anos por meio de políticas fiscais e alfandegárias que beneficiam apenas o capital estrangeiro. O RIGI busca consolidar um padrão de especialização produtiva no qual a Argentina seja uma mera exportadora de commodities, em um processo encabeçado por empresas transnacionais e sem qualquer articulação com a estrutura produtiva nacional. Sob esse regime, as empresas transnacionais deverão entregar 40% do investimento inicial nos próximos dois anos. A partir do terceiro ano, elas poderão fazer uso totalmente livre dos dólares gerados pelas exportações, o que reduzirá a disponibilidade de divisas do país futuramente. Além disso, elas poderão usufruir de benefícios fiscais por trinta anos.
Mapa da colonização contemporânea: o lítio na Argentina sob controle transnacional
O lítio é um bem natural comum que tem um papel estratégico na transição energética e é crucial para a disputa geopolítica. Para abordar essa questão de forma abrangente, além do RIGI, é essencial analisar a atuação internacional de Milei, que está totalmente alinhada aos interesses dos EUA. Desde que assumiu o cargo de presidente, Milei fez 12 viagens ao exterior, passando 47 dias fora do país, com os Estados Unidos como destino mais frequente. Seus vínculos com Elon Musk, que também está atrás do lítio argentino para sua empresa Tesla, são bem conhecidos. Em uma de suas muitas viagens aos EUA, Milei se reuniu com o empresário, fazendo acordos para eliminar “obstáculos burocráticos e promover o livre mercado”. Outro de seus destinos foi a Espanha, onde apresentou seu livro Capitalismo, socialismo y la trampa neoclásica [Capitalismo, socialismo e a armadilha neoclássica] e participou de um evento do partido de ultradireita Vox.
A Argentina é o país com a segunda maior reserva de lítio do mundo e, junto com o Chile e a Bolívia, forma o chamado “triângulo do lítio”. Enquanto esse mineral é considerado um recurso estratégico em países como Chile, Bolívia e México, na Argentina as leis continuam atendendo aos interesses das grandes corporações. A perda da soberania nacional em relação aos nossos bens estratégicos abre caminho para uma espoliação ilimitada por parte das empresas transnacionais. Assim, perpetua-se um modelo econômico dependente e extrativista que gera pobreza nas regiões em que a riqueza é extraída.
O lítio começou a ser explorado na década de 1980. Entretanto, sua exploração se intensificou na primeira e na segunda década dos anos 2000. As exportações de lítio cresceram rapidamente desde então. Na Argentina, houve um aumento na produção de lítio de 72,2% entre 2015 e 2020, de acordo com dados da Secretaria de Mineração de 2021.
No Terra Nativa, fizemos um mapa dos projetos de lítio em operação no país. Nele, é possível visualizar a estrangeirização que caracteriza o controle dessa produção. Esse mapeamento georreferenciado revela a concentração de projetos de lítio que estão sob controle de empresas transnacionais do Norte global, tornando-se uma ferramenta fundamental para entender as novas formas de colonialismo econômico e ambiental que operam em nossa região. Ao mesmo tempo, ele nos permite pensar estratégias para uma transição energética justa.
Por uma transição justa, feminista e popular
Atualmente, a era dos recursos não renováveis, como o petróleo e o gás natural, está chegando ao fim, e isso não se deve apenas à finitude desses recursos, mas também à vasta evidência científica sobre a grande poluição que eles geram, contribuindo para a aceleração das mudanças climáticas. Essa questão está na agenda do Norte, do Sul, das organizações multilaterais, dos Estados e, acima de tudo, das grandes corporações.
O nosso sistema de energia é um sistema colonial, dominado por grandes transnacionais, com concentração de propriedade, privatização de empresas públicas, aumento do consumo e maior participação do poder corporativo na política energética dos Estados. A América Latina e o Caribe, assim como a África e grande parte da Ásia, caracterizam-se pela exploração de territórios e zonas de sacrifício. Os povos indígenas, o povo negro e as comunidades camponesas estão na linha de frente contra os projetos extrativistas de grande escala do nosso Sul.
A pobreza energética é uma realidade em nossos países e aprofunda as desigualdades. A mercantilização da energia e as tarifas altas impedem que as famílias pobres tenham acesso garantido a esse serviço. O uso de lenha e carvão para cozinhar aumenta ainda mais em tempos de crise e afeta especialmente a vida cotidiana e a saúde das mulheres, que são responsáveis pelas tarefas de cuidado e reprodução da vida.
O setor de energia é um dos principais responsáveis por conflitos ambientais e violações dos direitos dos povos e territórios. A política energética está profundamente ligada à geopolítica, às políticas de desenvolvimento e aos interesses do capital transnacional nos setores do agronegócio, dos combustíveis fósseis e da mineração. O controle das reservas e a disputa das corporações transnacionais pela exploração dessas reservas fazem parte das motivações dos golpes e das intervenções nos processos políticos dos países latino-americanos. Isso ficou evidente durante o golpe na Bolívia em 2019, com a chegada da empresa de Elon Musk ao Brasil durante o governo de Bolsonaro e sua recente chegada à Argentina durante o governo de Milei.
A disputa sobre essa “transição” afeta nossas democracias. Portanto, atinge também a vida justa e soberana dos nossos povos. É necessário e urgente pensar em como vamos nos organizar para que essa transição se dê a partir de uma perspectiva feminista e popular. Ou seja, um processo que construa, ao mesmo tempo, estratégias contra os diferentes sistemas de opressão de gênero e classe e contra o racismo, o colonialismo, o fascismo e o imperialismo.
Nesse sentido, o Terra Nativa defende a soberania econômica e política dos Estados, a nacionalização dos bens estratégicos, a construção popular das políticas públicas e do planejamento do Estado e o fortalecimento dos laços regionais como estratégia fundamental. Nossa intenção é que este debate sirva de insumo para continuar a pensar em novos horizontes.