No dia 30 de dezembro de 2020, a maioria do Senado argentino votou a favor da legalização do aborto. A aprovação foi resultado de um amplo e intenso processo de mobilização nacional e territorial, que animou e inspirou mulheres militantes feministas das Américas e do mundo todo. Um ano e um mês depois, as mulheres argentinas continuam se organizando, monitorando o cumprimento da lei, exigindo a ampliação do acesso aos serviços e a libertação das mulheres presas por abortar. O aborto legal, seguro e gratuito é uma reivindicação que aprofunda a democracia e só se concretiza quando está ancorada no debate, na luta e na pressão feminista ampla e popular.
Para entender como foi a luta feminista por autonomia neste primeiro ano de aborto legal na Argentina, conversamos com Martha Rosenberg, uma das fundadoras da Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito. Psicanalista e militante feminista histórica, Martha compartilhou com Capire sua avaliação política desse forte processo de mobilização que levou à legalização do aborto, bem como suas apostas para continuar aprofundando e concretizando esse direito. Martha é autora de Del aborto y otras interrupciones [Sobre o aborto e outras interrupções], livro que compila artigos escritos ao longo de sua vida sobre as lutas das mulheres pela autonomia.
No dia 30 de dezembro de 2020, foi promulgada na Argentina a Lei de Interrupção Voluntária da Gravidez, resultado de um longo processo de mobilização feminista. Como foi essa luta?
É importante para mim constatar, um ano depois, que a luta continua, que não parou com a aprovação da lei. Essa conquista, que muda totalmente o panorama da prática do aborto, foi um marco histórico para nós: o aborto voluntário deixar de ser crime para ser um procedimento legal. Mas o fato de que exista a lei não altera automaticamente as condições da prática do aborto. Em primeiro lugar, é preciso colocar em prática todas as políticas públicas que garantem a igualdade de acesso ao aborto legal e seguro. Esse é um árduo trabalho que é responsabilidade do Estado. É uma lei federal de aplicação obrigatória e imediata em todo o país.
Na Argentina, há uma diferença muito marcada na distribuição territorial dos direitos reprodutivos e sexuais de acordo com a região do país, o grau de desenvolvimento das distintas províncias e o tipo de orientação política dos governos provinciais. Há uma orientação clara da parte norte do país, que é muito conservadora, muito pobre, muito subjugada. Isso não é uma novidade, é algo que vem acontecendo há décadas com uma influência e domínio muito importante dos setores ligados ao pensamento mais conservador da Igreja Católica e das igrejas evangélicas.
As políticas públicas precisam de orçamento, precisam de prestadores capacitados. Isso não se faz de um dia para o outro, muito menos com as resistências que foram derrotadas, mas não anuladas, no nosso país. Existem resistências conservadoras, misóginas e antidireitos que se fortaleceram muito nos últimos anos, a partir da primeira votação, em 2018, quando perdemos no Senado por pouquíssimos votos. Houve um reagrupamento e fortalecimento da reação antiaborto. O mesmo aconteceu em toda a América Latina e no mundo.
Guardar o lenço verde no bolso ou na bolsa e usá-lo quando vamos a um evento… O que antes era um sinal de identificação nas manifestações passou a ser também no cotidiano. Muitas garotas jovens têm o nosso lenço verde amarrado na mochila, vão para a escola, faculdade, andam na rua e usam suas plataformas de comunicação com ele. O lenço verde tornou-se um símbolo amplamente utilizado pelos movimentos feministas em todos os países, não apenas na América Latina. Tornou-se um símbolo graças à nossa proposta de que o direito ao aborto é um direito inter-relacionado com todos os outros direitos que possibilitam a prática de um aborto legal, seguro e gratuito.
Na Argentina, existem as “causales”, permissivos legais de aborto quando há gravidez causada por estupro e quando há perigo para a saúde e a vida da mulher. Essas duas concessões existem desde 1921, mas a prática era muito escassa, sempre foi judicializada. O que fizemos durante 16 anos foi a campanha pelo aborto legal, seguro, voluntário e gratuito até 14 semanas de gestação para todas as mulheres e pessoas, e que continue sendo legal sem prazo cronológico (da idade gestacional) para as concessões que já eram legais.
Nós temos um lema triplo: “educação sexual para decidir, anticoncepcional para não abortar, aborto legal para não morrer”. Nos dois primeiros lemas, que estão dispostos de acordo com o grau de importância para a prevenção, a educação sexual tem uma lei há 16 anos que, na maior parte do país, ainda não se cumpre como deveria. A Lei 25.673 sobre saúde sexual e reprodução responsável existe desde 2003 e alcançou estruturas mais ou menos estáveis, mas também não está sendo cumprida. As estruturas de fornecimento de anticoncepcionais foram desmontadas, a Secretaria de Saúde foi rebaixada durante o governo Macri, houve uma série de reduções no acesso aos anticoncepcionais gratuitos e disponíveis para qualquer pessoa em idade fértil. Faltam campanhas de divulgação, que são os meios pelos quais as pessoas podem saber que têm esses direitos.
A lei do aborto é muito boa e foi alcançada graças ao apoio do poder executivo. Estava em discussão desde 2018, quando Macri a colocou na agenda parlamentar, com um posicionamento de abrir a discussão e manifestar sua forte oposição. A partir daí, abriu-se uma discussão em todos os níveis sociais e políticos. A questão do aborto tornou-se uma questão política que todos os partidos disputavam. O presidente Alberto Fernández adotou o apoio à lei como tema de sua campanha eleitoral. Isso foi importante inclusive para obter votos para o presidente Fernández – porque a questão do direito ao aborto não é mais um “espanta votos”, como era dito antes.
A campanha desenvolveu um vasto número de formas de ação por meio de coalizões políticas com diferentes movimentos sociais. O direito ao aborto tornou-se uma questão política de discussão constante. O presidente Fernández apresentou seu próprio projeto para legalizar o aborto, que foi adiado pela pandemia. Nós decidimos insistir em apresentar o projeto em um momento em que todos diziam “não, com a pandemia devemos nos calar, não é prioridade”. Durante todo o primeiro ano de governo, realizamos uma campanha muito importante sobre a urgência da legalização do aborto chamada Urgente, urgente! Aborto 2020!
Você falou sobre os lenços, o lematriplo, a campanha de 2020… Existem outros elementos da estratégia que são fundamentais para o sucesso dessa luta que você gostaria de destacar?
A ideia de uma campanha nacional surgiu em 2003, no Encontro Nacional de Mulheres de Rosário. O Encontro Nacional de Mulheres é um traço muito característico do nosso movimento de mulheres. É original, não é comum existir em outros países. Nós fazemos encontros desde 1986. Eles acontecem todos os anos, em um lugar diferente do país, para onde vão mulheres de todas as classes e de todo o país. É autônomo e autofinanciado. As mulheres organizam suas economias com festas, rifas e solidariedade. São lugares de absoluta transversalidade, federalidade, pluralidade política e diversidade de sexualidade, gênero e etnia.
A Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito foi uma forma de construção intersticial, presente em todos os espaços de forma democrática e participativa. Existe uma comissão de articulação nacional que articula as regiões e os ativismos, onde são elaboradas políticas conjuntas, mas as estratégias políticas são sempre elaboradas nas Plenárias Nacionais da Campanha.
Também foi muito importante a construção da coalizão com o movimento Nem Uma a Menos [Ni Una Menos] a partir de 2015, que apareceu com enorme massividade devido aos crimes atrozes de feminicídio, que continuam ocorrendo no nosso país. No início da campanha, nos sommos com o lema “nem uma a menos por aborto clandestino”. Isso também determinou um crescimento muito importante. Apoiamos os movimentos queer com nossa solidariedade à luta pelo respeito à identidade de gênero e pelo casamento igualitário. Temos participado de muitas lutas pelos direitos humanos. O logotipo do nosso lenço tem o lenço branco das Mães da Praça de Maio [Madres de la Plaza de Mayo], que são um ícone da luta pelos direitos humanos no nosso país e um componente muito importante da política em nível nacional.
Conseguimos uma importante coalizão de movimentos. É um lugar de vínculo político, onde temos aliados e aliades em todos os setores políticos, inclusive a coalizão de deputados que batalharam em 2018, que se chamava As Sororas. Há muito trabalho acadêmico a respeito de como esse movimento foi construído enquanto uma espécie de experimento político para ampliar a democracia.
Nesse momento, uma das questões mais importantes é continuar preservando a autonomia política do movimento. Muitos setores confundem o fato de termos ganhado a votação pela iniciativa do atual governo com uma espécie de dependência política do governo. O projeto presidencial tem partes copiadas do nosso projeto, e gostaríamos que o presidente tivesse apresentado o nosso projeto como seu, mas isso não aconteceu. Do ponto de vista político, foi feita uma composição muito acertada. Foi apresentada junto com a chamada Lei dos Mil Dias, de proteção das gestantes até seus filhos completarem três anos, o que amplia muito a proteção que já existia. Acho que foi um acerto político para equilibrar o rechaço dos setores mais conservadores.
Nem todos os pontos da lei são o que queríamos. Por exemplo, o ponto de objeção de consciência foi colocado no projeto presidencial. A experiência é que, com base nessa objeção de consciência, foram desenvolvidos no último ano obstáculos, impedimentos, judicialização de práticas ilegais nas instituições de saúde. As instituições têm que garantir a prática do aborto apesar de todos os seus membros serem objetores de consciência. Há lugares na lei que abrem espaço para práticas restritivas do acesso ao direito, que alguns serviços realizam ilegalmente. Demoram e judicializam, ao contrário do que permite a lei. Eles não vencem essas batalhas, mas isso significa que muitas pessoas no caminho terão que sofrer. Essa questão exige uma mudança cultural, que por sua vez exige campanhas de divulgação que ainda não existem, e a vigência efetiva da educação sexual integral em todo o país.
Apesar desses desafios, o que mudou na vida das mulheres um ano e um mês após a promulgação da lei?
O que mudou subjetivamente é muito importante. A mulher que sabe que pode recorrer ao aborto sem ser punida, estigmatizada, maltratada, tem muito mais liberdade para tomar decisões sobre sua própria vida. Ela sente que tem maior valor social. Isso não ocorre isoladamente, pois acompanha uma série de mudanças. O número de ligações para a linha de saúde sexual do Ministério da Saúde tem crescido exponencialmente, assim como as consultas de aborto que, a partir dessa linha, são encaminhadas para serviços próximos ao local da consulta que estejam realizando o aborto voluntário e legal.
Aumentou, é claro, o número de abortos realizados na maioria das jurisdições porque, agora, é declarado. Antes era clandestino e secreto. Não se declarava algo que pudesse ser motivo de penalização, prisão, condenação social e efetiva. Há uma campanha muito importante pela liberdade das presas por aborto e contra outras práticas utilizadas para processar mulheres por outros eventos obstétricos. Os casos não eram visibilizados enquanto o aborto voluntário era ilegal. Agora, pelo princípio da lei agora em vigor, elas deveriam ser liberadas imediatamente.
O aborto clandestino é um risco para a vida. Agora, uma mulher pode decidir pelo aborto retirando da balança o risco de vida. Ela sabe que pode fazer um aborto com segurança. Mesmo assim, neste último ano houve casos de morte por aborto clandestino, que tem a ver com a falta de divulgação, educação sexual e integral e acesso aos serviços de saúde.
As companheiras socorristas são uma rede muito importante, com uma prática solidária de acompanhamento, informação e a criação de uma cultura focada na solidariedade feminista. A rede se concentrou no método medicamentoso em uma época em que não era tão difundido como agora. Sempre houve muitas discussões, pois o objetivo da campanha era alcançar a legalidade e a responsabilidade do Estado em relação à prática do aborto. Mas essa alternativa construiu uma prática sobre a qual existe atualmente uma troca e experiência muito rica. As equipes médicas consultam as companheiras socorristas pela experiência acumulada que elas têm.
A construção desse acesso ao aborto legal, seguro e gratuito é muito plurivocal. É um exemplo de prática política democrática e de ampliação de direitos para mulheres e pessoas que gestam que são elementos básicos para a transformação social de todo o mundo.
Que mensagem você gostaria de passar para as companheiras do mundo que lutam pela autonomia dos seus corpos e sexualidades?
É uma luta necessária. Não é suficiente para a transformação social, mas não é dispensável. Não pode ser abandonada. Tem que ser acompanhada de muitas outras lutas para criar as condições para o exercício desse direito. É uma luta que se comunica com todos os direitos sociais sobre as condições concretas de vida que possibilitam que a prática do aborto seja algo que possa ser escolhido e acessado, sem ter consequências para a saúde,e a vida e os projetos da liberdade das mulheres.