Mulheres no combate ao fundamentalismo religioso no Zimbábue

24/07/2024 |

Por Capire

Militante da Marcha Mundial das Mulheres no Zimbábue apresenta um panorama dos impactos do fundamentalismo religioso no cotidiano

O fundamentalismo religioso é a abordagem de grupos religiosos que buscam dar uma interpretação literal a textos e livros originais – como a Bíblia, o Corão e a Torá –, acreditando que os ensinamentos obtidos a partir dessa leitura devem ser utilizados em todos os aspectos políticos, econômicos e sociais da vida. Para a maioria das pessoas que praticam essas religiões é dito que elas devem ter uma obediência rígida à doutrina. Em África, o crescimento acelerado de novos agrupamentos religiosos liderados por chamados homens de Deus exacerbou as crenças fundamentalistas e levou ao desenvolvimento de uma lógica de seita. No lugar de onde eu venho, mais de 80% da população é cristã. Seja como for, temos uma pequena minoria da população que pertence a outras religiões, como religiões africanas tradicionais, ou pessoas que não têm nenhuma religião. Quando olhamos para o contexto político dessa população, vemos que as mulheres são maioria nas nossas igrejas – instituições que são mais patriarcais do que qualquer outra coisa.

Frequentar uma igreja não significa ser fundamentalista; as duas coisas são diferentes. Frequentar a igreja é um ato de encontro com outras pessoas que professam a mesma fé que você, por exemplo, para fazer uma oração aos domingos, realizar outras atividades e voltar para seus respectivos lugares com a esperança de rever a congregação na semana seguinte. Fundamentalismo significa aderir completamente ao que prega o livro sagrado. É preciso promover mais esforços de educação e campanhas para falar sobre o fundamentalismo religioso como uma prática negativa.

Nós vimos o surgimento do colonialismo em diferentes denominações. Fomos colonizadas e colonizados pelos britânicos e também pelos estadunidenses na época em que o Zimbábue era Rodésia. Foram esses os primeiros missionários que vieram para cá e disseram que deveríamos obedecer a Bíblia. Jogamos fora todas as nossas práticas tradicionais e começamos a seguir as crenças deles. Foi só depois da nossa independência que vimos a ascensão de religiões tradicionais. Não é ruim ter igrejas tradicionais daqui, mas atualmente elas estão sendo utilizadas como estrutura política dentro do partido dominante ou utilizadas por políticos para angariar apoios. Assim, elas deixam de ser igrejas, um movimento religioso, e se tornam um adendo de um partido político. Durante as eleições, todos os políticos correram para igrejas tradicionais para angariar total apoio ou para fazer campanha para cargos. Não há regulamentação para essas igrejas, e algumas lideranças desses espaços chegam até a ser pagas para mobilizar, organizar e dizer que todo mundo que frequenta a igreja deve votar em determinado partido. Além disso, as sociedades fundamentalistas religiosas podem receber financiamento pesado de organizações estrangeiras. Organizações religiosas locais sem fins lucrativos ganham dinheiro realizando projetos de fortalecimento econômico voltados sobretudo para mulheres e jovens, oferecendo acesso a empréstimos bancários por meio de programas de subsistência para pequenos grupos. Nesses espaços, as mulheres e meninas são manipuladas. Isso também é uma estratégia colonialista.

De modo geral, África – e sem deixar de fora o Zimbábue – está tomada pelo problema de crianças submetidas ao casamento. Homens que lideram essas igrejas apoiam o casamento infantil, afirmando que foram enviados pelo espírito santo. Então o que se vê são meninas sendo casadas com homens velhos. Além disso, há a questão dos casamentos polígamos e do incesto em nome de uma chamada espiritualidade apoiada por uma cultura de seita. Trazendo mais para o meu contexto, do Zimbábue, um pastor cristão disse a sua congregação, formada por uma maioria de mulheres, que não permitir o casamento polígamo não seria sagrado. Ele foi preso quando muitas outras histórias vieram à tona sobre casos de abuso, estupro e até do assassinato de mulheres e meninas por líderes religiosos.

Em fevereiro de 2024, no Quênia, houve o caso de um líder religioso que disse para seus seguidores jejuarem para poder ver Jesus. Mais de 400 corpos foram exumados e identificados – a maioria, de crianças e mulheres. O governo queniano ainda está investigando o caso. O fundamentalismo religioso é um flagelo. E se não for arrancado pela raiz, teremos uma grave crise política, econômica e social.

Seja sua irmã, sua mãe, sua prima, quando elas são pegas, parece que ficam hipnotizadas. As mulheres se afastam das pessoas que não compartilham de suas crenças. Hoje temos mulheres jovens que se uniram a outra onda de jovens profetas. Nossa luta feminista em todo discurso está em como fazer com que mulheres que vivem nessas condições possam se libertar. O feminismo é visto como uma abordagem radical promovida por mulheres que fracassaram na vida, como se estivessem buscando ter alguma relevância na sociedade. Precisamos desconstruir essa narrativa e reinterpretar o sentido de feminismo.

Nosso foco deve estar nas mulheres que ocupam as lideranças dessas igrejas, para oferecer mais informações e criar espaços seguros para elas. É necessário muito trabalho de incidência para identificar as pessoas chave ou mulheres com influência nessas igrejas. Convidá-las para encontros comunitários. Também precisamos ter paciência com elas, por causa da forma como elas foram doutrinadas. A abordagem deve ser amigável, sem atacá-las, para buscarmos entender como elas operam e coletar informações internas.

A maioria dessas mulheres frequenta uma igreja para encontrar algum conforto diante de situações muito difíceis e problemas econômicos e sociais. Às vezes, em maior medida, as mulheres que não têm nada ouvem promessas de riquezas e até de tratamento médico ou acesso a diferentes recursos. Quando uma mulher está tão fragilizada e empobrecida, ela vai correr para qualquer um que sacuda uma cenoura na frente dela, sem sequer olhar para as condições em que esse dinheiro é dado. Então precisamos trazer as mulheres jovens para perto e compartilhar a ideologia feminista, sobretudo a da economia feminista. Para as jovens, é possível alcançar a economia feminista se criarmos espaços em que elas possam aproveitar possíveis oportunidades, incluindo liberdade social, econômica e política. Devemos nos proteger da exploração e trabalhar pela justiça social, e também nos comprometer com a preservação do meio ambiente. Devemos estimular a autossuficiência para construir confiança e resiliência.

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Este artigo é de autoria de uma militante da Marcha Mundial do Zimbábue que terá sua identidade preservada por questões de segurança.

Editado por Bianca Pessoa e Helena Zelic
Traduzido do inglês por Aline Scátola
Idioma original: Inglês

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